Reflexões sobre a morte de uma figura pública e o modelo de sociedade que representa
A morte de uma das personalidades mais influentes da televisão brasileira trouxe à tona, além da comoção geral, questões que vão além da pessoa e das emoções do momento. Na verdade, ele representa um modelo e um ideal de sociedade que, mesmo respeitando a pessoa falecida, eu não compartilho.
O fato de a maioria das grandes emissoras de televisão ter alterado toda a sua programação para se dedicar exclusivamente a essa personalidade, sua vida pessoal, mas sobretudo sua vida midiática, é, na realidade, uma afirmação de que sua atuação e o império que ele construiu são o modelo, o protótipo de sociedade e de mundo ideal para todos. É evidente que a maneira ostensiva, prolongada e temporal como ele ocupou a grande mídia brasileira no último fim de semana não foi apenas uma homenagem, mas algo mais significativo, que passou por cima das guerras, das violências e das tantas outras mortes que não recebem destaque, se tornando mercadoria e audiência. Quando não são transformadas em juízos condenatórios, alimentam constantemente a aporofobia que o sistema neoliberal tem como um de seus ideais de progresso e bem-estar.
Para mim, uma questão é clara, e vários papas já afirmaram que todo tipo de ideologia de nosso tempo é, em sua essência, ateia, incluindo o neoliberalismo, que é utilizado por correntes religiosas pentecostais e neopentecostais fundamentalistas como uma arma de combate contra o “fantasma comunista” e, particularmente, para denegrir e abafar a “opção preferencial pelos pobres”, um ato do magistério pastoral da Igreja latino-americana, concretizado pelo Concílio Vaticano II e retomado, ainda que timidamente, na Conferência de Aparecida em 2007.
Um passo decisivo e mais incisivo, embora pareça não ter frutos imediatos como exige o ritmo cultural de nossa época líquida e gasosa, é a guinada teológica dada pelo Papa Francisco com suas exortações, encíclicas e constantes discursos que abordam temas como ecologia, aquecimento global, mãe terra e, não menos importante, economia e educação, sendo esta última bem diferente da alfabetização, cuja competência cabe às políticas públicas.
Enfim, o ponto crucial para mim é que a tão badalada e endeusada personalidade que ocupou o espaço público no último fim de semana não representa um modelo de vida e de sociedade, porque, mais uma vez, estou convencido de que os povos nativos e sua visão do universo, embora ignorados, obstaculizados e violentados por nosso mercantilismo neoliberal, constituem, sem dúvida alguma, nossa âncora de salvação, ajudando-nos a recuperar aquele conceito holístico e sagrado da vida que o mundanismo religioso nos fez esquecer. Oxalá ainda possamos compreender e acolher isso como um dom da mãe terra.
Editorial VEICULADO NA REDE DE NOTÍCIA DA AMAZÔNIA EM 20.08.2024