Memórias de uma infância; vivência eclesial; 6ª Semana Social Brasileira; Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho; pandemia mortal da covid-19; palavras do Papa Francisco e a caridade cristã em sua dimensão socioestrutural

Por Osnilda Lima | Comunicação 6ªSSB
Quando criança, a viver em uma comunidade da zona rural, no Paraná, convivíamos em cinco núcleos familiares. Tradicionalmente, essas famílias realizam os puxirões. Esses grupos viviam no sistema faxinalense, no modelo de criação de animais e produção agrícola para o consumo e comercialização e do extrativismo florestal de baixo impacto.
Os puxirões eram “reunidas” dos membros dos núcleos familiares para preparar a terra e realizar o plantio, depois novamente se encontravam para a colheita. Essas ações aconteciam de forma circular, que, na maioria das vezes, perpassava todos os núcleos familiares. Eram cerca de três a quatro dias de trabalho em cada família. Ao final do cumprimento das atividades ocorriam os bailes, as festas, para celebrar o encerramento dos ciclos das atividades.
Vale lembrar que o grupo também realiza os “ajudatórios”. Essa ação coletiva era voltada às famílias que estavam em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica. Eram ajudas das mais diversas possíveis: para a construção de uma casa, preparar a terra para o plantio e depois a colheita, entre outras necessidades urgentes. Isso sem o sistema da troca dos dias compartilhados, como nos puxirões.
Ah, no decorrer de uma semana, a cada mês, passava a Capelinha de Nossa Senhora Aparecida, era a imagem da santa numa casinha de madeira, era o puxirão das rezas, as famílias se reuniam à noite, nas casas, para o momento de oração, era a ocasião para o intercâmbio da vida social, cultural e política da comunidade. Com o tempo, chegou à proposta dos Círculos Bíblicos, que também ocorriam nas casas, o que favoreceu e fortaleceu a maturação da fé e da vida em comunidade. Lembro-me da gente cantando com entusiasmo, nos Círculos Bíblicos, o Baião das Comunidades de Zé Vicente: “Somos gente nova vivendo a união, somos povo semente de uma nova nação […]”. Eu me sentia, com a famílias, tão parte da música, em especial nesta estrofe: “Vou convidar os meus irmãos trabalhadores, operários, lavradores, biscateiros e outros mais e juntos vamos celebrar a confiança, nossa luta na esperança de ter terra, pão e paz…”.
Motyrõ, puxirão, puxirum, mutirão: reunião para a colheita ou construção, ou simplesmente trabalho em comum, apoio mútuo
Puxirão, puxirum, mutirão, depende das variações geográficas do Brasil, mas o termo origina-se etimologicamente da família linguística Tupi-Guarani motyrõ, que significa reunião para a colheita ou construção, ou simplesmente trabalho em comum, apoio mútuo, segundo o verbete do Wikifavelas.
Votando ao núcleo das famílias dos puxirões, nas décadas de 70 e 80, com a expansão de grandes lavouras, de forma mecanizada em todas as etapas, ocorreu o início da “desestruturação” do modo de vida dessa comunidade, e de outras. Com isso, somou-se a ausência de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar para a permanência no campo, a ausência de promoção da sustentabilidade ambiental, social e econômica, o acesso limitado à educação, ineficiência do serviço de saúde pública, exploração irracional e irresponsável dos recursos naturais. Além do que, somaram-se os conflitos por terra, violação dos direitos humanos e da natureza, assassinatos e grilagens.
Diante de tais fragilidades, essas famílias começaram a incentivar seus filhos e netos e migrarem para as cidades, em busca de “algo melhor”. Algumas famílias, o núcleo inteiro sofreu o deslocamento forçado para as cidades. Eu fui uma dessas filhas, que deixa o núcleo familiar, com apenas 13 anos de idade e vai para a cidade, com o objetivo de estudar, mas tinha de trabalhar, também. Ah, boa parte dessas pessoas foram viver nas regiões periféricas das cidades, em espaços de vulnerabilidade, de muitas limitações e privações.
Mas conto, meus pais e três irmãos permanecem firmes na agricultura familiar. Ilhados em meio a plantação de soja. As casas estão como um oásis, em uma área protegida por diversas espécies de árvores, pomar frutífero, horta e animais. Talvez num minissistema de produção agrossilvipastoril. Mas as moradias estão tomadas, ao redor todo, por plantações de soja. É bem tenso quando pulverizam a plantações de soja. O veneno toma conta do ar, da terra, das águas. O clima fica pesado, o cheiro é muito ruim. A vida por lá não tem sido fácil. Há muito assédio da agricultura intensiva.

Um convite ao Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho
Quatro décadas se passaram. Em 2020 fui convidada para contribuir, de forma singela, com a realização da 6ª Semana Social Brasileira (6ªSSB) que traz o tema, “Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho”. O coração esperançou, e a memória da infância aflorou. Acreditei muito no projeto. Acredito! Acreditarei! Por isso, sigo a esperançar.
As Semanas Sociais Brasileiras são iniciativas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), animadas pela Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora (Cepast-CNBB) e mobilizadas pelas Pastorais Sociais e Movimentos Populares. Têm o objetivo de fortalecer as ações conjuntas e as próprias organizações envolvidas, a partir de pautas comuns e realização de incidência na Igreja e na sociedade, para processos sociotransformadores.
O tema desta 6ª edição nasce da provocação do Papa Francisco, em outubro de 2014, no primeiro Encontro Mundial de Movimentos Populares. Na ocasião, o pontífice recorreu à solidariedade: “solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, não se pode dizer; mas uma palavra é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridades da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais”, enfatizou Francisco. Ele também reforçou e convocou à defesa dos direitos das pessoas trabalhadoras e das suas famílias, “Digamos juntos de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem-terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que provém do trabalho”, declarou.
“Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho”
É dessa provocação de Francisco, que nasce o tema da 6ª Semana Social Brasileira, “Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho”,com a proposta de mobilização e realização entre 2020 e 2022.
Na mesma Mensagem de 2014, o pontífice, nos desafia: “é impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação como protagonistas das grandes maiorias e este protagonismo transcende os procedimentos lógicos da democracia formal”. Ele interpela, para que a construção de um mundo de paz e justiça duradouras supere o assistencialismo paternalista. Segundo ele é preciso criar formas de participação que envolvam os sujeitos e atores que estimulem as estruturas governamentais locais, nacionais e internacionais com uma energia moral para a inclusão das pessoas excluídas, na construção do destino comum. Tudo isso deve ser feito com entusiasmo construtivo, sem ressentimentos e com amor, de acordo com o Papa Francisco.
Participantes do Seminário Nacional da 6ªSSB, realizado no formato hibrido em outubro de 2021, ainda com uma série de restrição devido a Covid-19
Uma pandemia mortal tomou conta da Terra
Para além de realizar os mutirões na defesa da vida humana e da natureza, na luta pelo direito à terra, à moradia e ao trabalho digno, a 6ªSSB interliga esse clamor aos eixos: economia, democracia e soberania.
Inicialmente a 6ª edição da Semana Social Brasileira tinha a previsão de ser realizada entre os anos de 2020 e 2022. Os mutirões, com uma intensa programação, seriam realizados em todo o território nacional, nos 19 Regionais da CNBB. Mas nesse processo, em março de 2020, o mundo parou. A Covid-19 tomou conta do planeta. Em 30 janeiro de 2020, Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto era uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional (PHEIC) e, em 11 de março de 2020, uma pandemia. Não havia vacina para enfrentar a doença. O coronavírus tomou conta do planeta, infectou mais de 75 milhões e causou a morte de quase 15 milhões de pessoas em toda a Terra, segundo a OMS. Cerca de 57% de pessoas em todo o mundo foram infectadas. Tornando-se a quinta doença mortal da história.
Somente três anos depois, 5 de maio de 2023, a OMS anunciou o fim da PHEIC, com vacinas eficazes para a redução de casos graves e o controle da Covid-19 e antivirais para o controle do vírus. O cenário se tornou favorável para o fim da pandemia. Um novo governo de coalizão assumiu a presidência do Brasil, com ele o fortalecimento e retomada da ação pela vacinação, com altas coberturas vacinais no país, o que favoreceu massivamente o incentivo à imunização.
Não podemos esquecer que o governo de Jair Bolsonaro (PL), segundo dados Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 (CPI da Covid), recusou onze ofertas formais de fornecimento de vacinas contra a Covid. O Documento apontou que o Governo Federal agiu de forma não técnica no enfrentamento à pandemia. Com essa atitude expôs deliberadamente a população ao risco concreto de infecção em massa, sinaliza o Documento. Com isso, perdemos muitas vidas.

Muitos de nós perdemos mãe, pai, irmão, irmã para a Covid-19. Todos perdemos pessoas muito próximas: amigos, parentes. Todos perdemos! Chegou um momento, não tínhamos mais forças para chorar nossos mortos e não podíamos realizar o rito da entrega de nossos entes queridos.
No Brasil, segundo o consórcio de veículos de imprensa encerrado no dia 28 de janeiro de 2023, perdemos mais de 700 mil vidas, essas tiradas abruptamente pela doença e 36 milhões de pessoas foram infectadas. O Grupo se uniu após governo de Jair Bolsonaro tentar omitir dados da população e atrasar os boletins sobre a doença. Os dados eram coletados a partir das informações geradas pelas secretarias estaduais de Saúde.
Nós estamos aqui sobreviventes. Perdemos demais. Não saímos ilesos dessa catástrofe global e tampouco nos recuperamos. Mas vamos esperançando! Estamos ainda juntando, organizando o que sobrou de nós. A pandemia tirou amores de nossas vidas, nos freou na agenda, nos levou à reclusão entre paredes, isso para quem tinha lugar para se recolher. Quantas milhares de pessoas, sem acesso à moradia, estiveram ao relente, totalmente expostas, e ainda continuam.
Novamente o Papa Francisco nos estimulou na ação: “nestes dias de tanta angústia e dificuldade, muitos se referiram à pandemia que sofremos com metáforas bélicas. Se a luta contra o Covid-19 é uma guerra, vocês são um verdadeiro exército invisível que luta nas trincheiras mais perigosas. Um exército sem outra arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade que reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozinho”, disse ele na Carta aos Movimentos Populares, em abril de 2020 (CMP2020).
