Mariana Venâncio, assessora da CNBB, destaca a importância da Ecologia Integral e da Campanha da Fraternidade para a vivência da fé e o cuidado com a Criação à luz da Sagrada Escritura
Por Osnilda Lima | Cepast-CNBB
Em um mundo cada vez mais marcado por crises ambientais e desafios ecológicos, a Campanha da Fraternidade 2025 nos convida a refletir sobre a importância da Criação e sua relação com a fé à luz da Sagrada Escritura. Com o tema “Fraternidade e Ecologia Integral” e o lema “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31), a campanha busca despertar a consciência para a necessidade de cuidar da Terra e de todas as suas criaturas, à luz da Ecologia Integral. Para aprofundarmos essa temática, conversamos com Mariana Aparecida Venâncio, assessora da Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB e colaboradora na redação do texto-base da Campanha da Fraternidade 2025.
Venâncio, explora a relação entre a fé e a Ecologia Integral a partir da Bíblia. O Gênesis, segundo ela, inspira o cuidado com a Criação, enquanto o Êxodo alerta sobre as consequências da exploração da natureza. Levítico e o Ano Jubilar trazem ensinamentos sobre o descanso da terra e a honra a Deus. Jesus, por sua vez, usa elementos da natureza em suas parábolas e na Eucaristia para revelar o mistério divino. O desafio atual, conclui Venâncio, é contemplar a eternidade na Criação, evitando a exploração e a avareza.
Como a narrativa da Criação em Gênesis nos inspira a cuidar da Terra e de todas as suas criaturas, à luz da Ecologia Integral?
Mariana Venâncio – Os primeiros capítulos do Gênesis nos lembram de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus. Nesse sentido, deve buscar sempre se relacionar com a Criação a exemplo do que faz o Senhor: no cuidado e na criatividade da constante renovação da Criação.
O domínio sobre os seres criados não deve ser entendido como disposição à utilização a seu bel-prazer, mas como responsabilidade de cuidar e guardar.
“O domínio sobre os seres criados não deve ser entendido como disposição à utilização a seu bel-prazer, mas como responsabilidade de cuidar e guardar.”
De que forma as catástrofes ambientais no Egito, relatadas no livro do Êxodo, nos alertam sobre as consequências de políticas opressivas e exploradoras da natureza, e como podemos relacionar isso à realidade atual?
Mariana Venâncio – Com relação às catástrofes ambientadas no Egito, é interessante observar que a natureza sempre proclama a grandiosidade e o poder do Senhor. Naquela ocasião, ela revelava a presença do Senhor que estava com Moisés e com seu povo. Na verdade, as 10 pragas que o Senhor envia ao Egito são a manifestação do seu poder, da sua presença, da sua grandiosidade. Ao longo de toda a Sagrada Escritura, as manifestações da natureza acompanharão sempre essa manifestação do Senhor.
Então, na verdade, as políticas que são opressivas e exploradoras da natureza destroem uma das primeiras manifestações do Senhor, se não poderíamos dizer a primeira, que convida o ser humano ao seu conhecimento e à contemplação da sua grandiosidade, do seu poder e do seu mistério. Também, ao longo de toda a Sagrada Escritura, a natureza será sempre a reveladora do mistério do Senhor, o mistério que é o Senhor, e o convite para que o ser humano aprofunde e adentre esse mistério. Por isso, atentar contra a natureza é diretamente um atentado contra o Senhor.
“Atentar contra a natureza é diretamente um atentado contra o Senhor.”
Quais ensinamentos podemos extrair das leis do Levítico e do Ano Jubilar em relação à Ecologia Integral, e como podemos aplicá-los em nossas comunidades hoje?
Mariana Venâncio – No livro do Levítico, as leis relacionadas ao sacrifício e ao descanso da terra falam diretamente a respeito do projeto do Senhor de eliminar do meio do seu povo tudo aquilo que ia contra a sua lógica divina, nova a partir da saída do Egito. Ao adentrar a terra prometida, era necessário que o povo observasse um conjunto de leis que só mais tarde foram escritas, mas que podem ser compreendidas como esse conjunto de leis que formava o povo para ser um povo novo. Não mais como eles eram no Egito, a partir de uma sociedade opressora, de uma sociedade que estava em desacordo com o sonho de Deus para o seu povo, mas agora de um jeito novo.
Especialmente com relação aos sacrifícios animais, o livro do Levítico regula e regulamenta algumas circunstâncias nas quais esses sacrifícios são permitidos para que a violência cometida contra a criação divina não aconteça dentro de Israel, a não ser em vista do culto. Os animais que eram sacrificados para participarem do culto eram oferecidos e se transformavam em oferendas agradáveis ao Senhor. Tanto é que no Levítico essas oferendas são queimadas para que elas deixem essa existência e passem a uma nova forma de existência que é agora agradável a Deus. O sacrifício ganha um motivo para que a violência contra os animais não aconteça de modo desordenado no meio do povo. A lei tem esse valor de colocar um limite à violência.
Em relação ao ano jubilar, o descanso da terra e também o descanso dos animais, assim como o descanso do ser humano, têm o objetivo de honrar a Deus. Deus é honrado com o descanso do ser humano e do mundo criado, e Ele também é honrado como criador de todas as coisas, a quem todas as coisas pertencem. No ano jubilar, há orientação de que a terra seja devolvida aos seus proprietários originais porque, na verdade, não é o ser humano o proprietário da terra, mas o próprio Deus. A Deus é que pertencem todas as terras, é que pertence toda a criação e, por isso, as terras devem ser devolvidas aos proprietários originais porque eles foram designados por Deus para o cuidado daquela porção do mundo criado. Na verdade, a terra não pertence a ninguém, ela pertence unicamente a Deus e ela tem os seus cuidadores, é por isso que faz sentido que ela seja devolvida aos seus proprietários originais. É mais uma atitude de libertação, de descanso, mas principalmente é uma atitude de honrar a Deus, a quem pertencem todas as terras e a quem pertence todo o mundo criado.
“Deus é honrado com o descanso do ser humano e do mundo criado, e Ele também é honrado como criador de todas as coisas, a quem todas as coisas pertencem.”
Como os ensinamentos de Jesus, como a parábola do Semeador e a Última Ceia, nos convidam a uma relação mais profunda com a Criação e a uma vivência eucarística que promova a Ecologia Integral?
Mariana Venâncio – A respeito dos ensinamentos de Jesus e da presença da criação, tanto nas suas parábolas quanto no seu ensinamento e até mesmo na Eucaristia, Jesus sempre enxerga na criação a primeira forma por meio da qual os seus discípulos podem adentrar o mistério divino. Quando Ele ensina por meio de parábolas, sempre recorda elementos visíveis, elementos da natureza que faziam parte do cotidiano dos discípulos, coisas naturais que eles observavam, mas que talvez eles não se davam conta do mistério divino contido naquelas circunstâncias ou naqueles elementos. Jesus os convida a contemplar esse mistério e assim mergulhar no mistério maior que é o próprio Deus.
É o que acontece, por exemplo, na parábola do semeador, em que Jesus os convida a contemplar aquela pequena semente que, uma vez lançada pelo semeador, germina e produz frutos. Quem de nós nunca se encantou pelo mistério de uma semente que se torna uma árvore frondosa e nela contemplou a ação divina? É o que Jesus convida seus discípulos e seus ouvintes a fazerem. Outro exemplo é em Lucas, quando Ele pede que os discípulos contemplem os lírios do campo que não tecem nem fiam, mas estão sempre lindos, belíssimos, preparados pelo próprio Senhor, e assim Jesus ensina aos discípulos a confiança na providência divina. Ele sempre parte de elementos da natureza para sermos capazes de adentrar o mistério divino.
É o que acontece na Eucaristia. Jesus poderia ter instituído seu memorial de diversas formas, mas Ele escolhe o vinho e os pães ázimos para recordar não só, não mais, a libertação do Egito, mas agora a Páscoa definitiva que se faz a partir do seu próprio corpo, do seu próprio sangue. O maior convite a adentrar o seu mistério hoje, para nós, é o convite do pão e do vinho. Por isso Jesus parte sempre do mistério contido na criação para podermos aprofundar o mistério divino.
É, na verdade, o que a Dei Verbum ensina. A criação é uma das formas pelas quais o Senhor começa a se manifestar à humanidade para convidá-la a uma relação filial que culminará na salvação.
“Jesus sempre enxerga na criação a primeira forma por meio da qual os seus discípulos podem adentrar o mistério divino.”
Será que, assim como a comunidade joanina, no Apocalipse, ainda conseguimos vislumbrar a eternidade ao contemplar a Criação? Ou será que nossas ações em relação a ela têm nos afastado cada vez mais da eternidade?
Mariana Venâncio – A comunidade joanina contemplou a eternidade ou esperou a eternidade por meio da contemplação da beleza da criação, que não é somente a beleza que salta aos olhos, mas é a beleza do ordenamento da criação, a beleza da paz que existe na criação e a beleza da progressão da criação: uma planta que cresce, uma planta que germina, um fruto que alimenta, que é manifestação real, visível e concreta do Senhor e do seu mistério.
O desafio para nós hoje é esperar e contemplar a eternidade a partir desses sinais visíveis. Na verdade, é o desafio que se apresenta a toda a sociedade: a partir daquilo que é simples, que é cotidiano, não necessariamente do extraordinário e do mágico, contemplar o mistério do Senhor e esperar o reino que virá. É nosso grande desafio, mas é também um convite que Jesus nos faz, o convite de contemplar aqui os seus sinais, e a criação pode ser um desses sinais, mas esperar e construir o caminho e vincular-se ao caminho que é o mesmo, para que um dia possamos adentrar a eternidade, onde experimentaremos de modo claro e definitivo essas maravilhas que agora começamos a vislumbrar por meio da criação.
O que precisamos tomar cuidado é que nossas relações com o mundo criado, às vezes, estão na direção oposta, estão, às vezes, na direção de anular a presença de Deus que há nelas, para utilizarmos delas para o lucro, para a construção das nossas ambições, para saciar a nossa avareza, e não como caminho para que um dia possamos alcançar a Sua experiência plena.
“O que precisamos tomar cuidado é que nossas relações com o mundo criado, às vezes, estão na direção oposta, estão, às vezes, na direção de anular a presença de Deus que há nelas, para utilizarmos delas para o lucro, para a construção das nossas ambições, para saciar a nossa avareza.”