Celebração da Missa do Galo junto a Pop Rua de Aracaju (SE) em 24 de dezembro de 2024
Jesus estava presente nas centenas de pessoas em situação de calçada e na pureza de um olhar esperançoso e nas mãos postas ao rezar baixinho

 

 

Por Cláudia Pereira

 

 

A noite de Natal, tradicionalmente é um momento de família e celebração. Este ano vivemos ao lado dos irmãos/as de rua em Aracaju. A experiência de compartilhar a  preparação da ceia, conhecer novas amizades e testemunhar sorrisos entre aqueles que vivem nas ruas, fortalece a luta na construção do bem viver.
O Natal acontece o ano inteiro, principalmente para os mais pobres. A luta constante pela sobrevivência e pela garantia dos direitos de ser e existir, enfrentada por povos da cidade, do campo, das florestas e das águas, torna o Natal uma presença contínua. No dia 25 de dezembro, celebramos o aniversário de Jesus e renovamos nosso compromisso de construir um mundo mais justo, como ele nos ensinou. Este ano, eu e o meu companheiro Walter Sousa, vivenciamos a noite de Natal sob o céu sergipano, em um ritmo mais lento e junto aos irmãos/as de rua de Aracaju (SE).
Antes da beleza litorânea de Aracaju, a fome se apresentou como a primeira realidade. Logo nas primeiras horas após nossa chegada, avistamos pessoas em situação de rua. Dividimos nosso almoço com uma mãe e duas crianças na orla da praia de Atalaia. Passavam das 15h e eles ainda não haviam almoçado.

 

A cozinha da paróquia São Pedro dos Pescadores é o centro da solidariedade para a ação da Pastoral do Povo de Rua. Foto: Walter Sousa
Sergipe, é o menor estado do Brasil em extensão territorial, possui uma população de aproximadamente 2.210.000 habitantes. Sua capital, Aracaju, é a cidade mais populosa do estado. Com ruas organizadas e economia baseada no turismo, a cidade possui 35 quilômetros de praia, o que favorece a coleta de materiais recicláveis. O setor terciário também impulsiona a economia, além de Sergipe ser o maior produtor terrestre de petróleo do país.
O último Censo da população de rua de Aracaju, realizado em  setembro (2024) apontou um número de 600 pessoas em situação de rua.  Já o censo do IBGE, divulgado na mesma  época, aponta que o estado Sergipe possui 2 mil pessoas morando de forma improvisada.
Diante desse perfil econômico, nos questionamos os motivos que levam pessoas a viverem nas ruas, a mesma pergunta que fazemos em relação a São Paulo, onde moramos por ser a capital mais rica do Brasil e da América Latina. Estudos recentes do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apontam que São Paulo possui 80 mil pessoas morando nas ruas.
Deixamos os questionamentos “sem respostas concretas” de lado, embora conheçamos a raiz do problema e principalmente o que gera tudo isso. Podemos resumir em uma palavra: Ganância.

 

Marcos de Carvalho, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Cláudia, Solange e Cris no preparo da noite de natal. Foto: Walter Sousa
Passava das 15h do dia 24 de dezembro, véspera de Natal, quando chegamos à paróquia São Pedro dos Pescadores, no bairro Industrial, zona norte de Aracaju (SE). Desde 2019, a paróquia acolhe as ações da Pastoral do Povo de Rua. Este é o terceiro ano que a Pastoral, em conjunto com as Pastorais Sociais e a Arquidiocese de Aracaju, realiza a Missa do Galo com a população de rua.
Nossa noite de Natal começou como em milhares de lares brasileiros: preparando a ceia. Fomos recebidos por Marcos Corrêa de Carvalho, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, que nos apresentou as recentes conquistas no espaço destinado às ações para os irmãos de rua.
O aroma da comida tomou conta do ambiente, e Marcos nos levou até a cozinha, onde nos juntamos a Solange, conhecida como Sol, que finalizava o preparo. Conhecemos a Cris e o Marcio, ambos com a trajetória de suas vidas nas calçadas e atualmente colaboram com a pastoral. Não demorou muito, chegou o Paulo Santos, coordenador da Cáritas e Cláudia, minha xará que é voluntária na pastoral.
Clima de festa de Natal. A alegria do Marcos, Paulo, Sol e todos os envolvidos contagiou a festa. Família reunida, ceia natalina, ambiente decorado (a praça, neste caso), presentes e um momento de celebração.

 

A cozinha da paróquia é o centro da solidariedade. A cada marmita montada, a sensação era de um grande reencontro familiar. A alegria contagiante de Marcos, Paulo, Sol e dos demais voluntários nos envolveu em um abraço caloroso. Embora fosse a primeira vez que participávamos daquela celebração, a sensação era de que estávamos em casa. A história da Sol, que escolheu passar a noite de Natal com os irmãos de rua em vez de sua família, a felicidade da Cris, pela suas conquistas e pelo simples fato de estar ali naquele espaço. Todas essas partilhas demonstram a solidariedade concreta que constrói caminhos para uma sociedade mais sensível às causas dos mais pobres.
Sobre uma mesa, estavam cinco panelas bem grandes  com arroz, feijão tropeiro, macarrão, salada, frango e linguiça. A preparação da ceia começou ainda no período da manhã com ajuda de muitos voluntários. Nos juntamos a eles para montar 200 marmitas enquanto o Marcos foi organizar outros preparativos da estrutura para a noite de Natal. Perguntei a Solange se após o preparo das marmitas ela passaria a noite de Natal com  a sua  família, ela respondeu com firmeza que aquele momento era exclusivo para o povo. “Depois daqui vou tomar banho e me arrumar, ficar bonita para passar a noite de Natal com os meus irmãos de rua, as minhas filhas me têm o ano todo e a hora que precisarem de mim, portanto hoje dedico aos meus irmãos da rua”, respondeu Sol.
Cris, mulher negra que teve trajetória de rua, esbanjava expertise ao partilhar a comida nas marmitas de isopor. Ela sabe bem a quantidade e a necessidade de quem sente fome. Recente, a Cris conquistou o direito de ter sua moradia. “Vai lá na minha casa, vai me visitar eu faço um café pra nós”, disse Cris ao convidar os amigos para conhecer a sua casa. Acho que foi uma das frases mais alegres que ouvi naquele dia.
Enquanto preparávamos as marmitas, duas senhoras idosas chegaram, seus olhos carregavam esperança e dor. Uma delas, de corpo franzino pediu algo para comer, pois ainda não tinha feito nenhuma refeição. Naquele momento, a fome não era apenas uma necessidade física, mas um grito silencioso por dignidade. A solidariedade de todos  que prontamente atendeu ao pedido, nos remeteu ao momento de Maria e José que procuravam abrigo para a chegada de Jesus.
Decoração de Natal na praça Fausto Cardoso, no centro da cidade, próximo a Catedral de Aracaju. Foto: Walter Sousa
Já era noite quando carregamos os carros com quase 200 marmitas e fardos de refrigerantes  e nos deslocamos para a praça Fausto Cardoso, no centro da cidade, próximo  a Catedral. Por lá os irmãos da rua já nos aguardavam para a festa de aniversário do menino Deus, na praça que estava lindamente decorada com motivos natalinos.
Antes da missa eu e o Walter atendemos o convite do Paulo para conhecer seus familiares. Associamos a visita como dos três Reis Magos, só que de uma  forma bem diferente, mas muito simbólica para nós. Levamos um abraço, a alegria e, em nossos corações a esperança de um mundo mais justo. Em cada lar que visitamos – a casa de Paulo, a de seus amigos e a da família de Amanda, companheira do Paulo –, encontramos um tesouro maior que qualquer ouro: a calorosa acolhida, a alegria simples e a força do afeto. A cada encontro, era como se estivéssemos oferecendo nossos próprios presentes, não em ouro, incenso e mirra, mas em compaixão, respeito  amizade e o Esperançar. Todas as casas continham a alegria presente, ceia posta  e aquela festa do encontro que é muito característico da família nordestina. Lindo, simplesmente, lindo.
Depois destas  visitas  rápidas e especiais com Paulo que não parou nenhum minuto, voltamos para a praça onde a festa principal estava para começar. Paulo e Marcos articularam até os últimos minutos os detalhes para a celebração, desde acolhida até as cadeiras para que todos ficassem confortáveis e atendidos. A rede das pastorais sociais e a coletividade de amigos solidários é uma sintonia perfeita. A cada minuto a praça ficava ainda mais bonita com a presença dos irmãos/as de rua e moradores da região.

 

Dom Josafá Menezes da Silva, arcebispo da Arquidiocese de Aracaju e dom José Palmeira Lessa, arcebispo emérito, celebraram a Missa a meia noite, dia de Natal. – Foto: Walter Sousa
Dom Josafá Menezes da Silva, arcebispo da Arquidiocese de Aracaju e dom José Palmeira Lessa, arcebispo emérito da Arquidiocese junto aos padres e religiosos iniciaram  a Missa do Galo exatamente a meia noite. “Este momento é uma noite de amor”,  expressou dom Josafá.
De fato, foi uma noite em que o sentimento de amor prevaleceu. O aniversário de Jesus foi celebrado sob o céu  de Aracaju, na rua e na praça onde se encontram a população de rua, junto aos corações solidários e sorrisos sinceros. Jesus menino estava presente através das crianças, das mulheres  (algumas grávidas), das pessoas trans, dos homens e idosos em situação de rua da cidade de Aracaju. Jesus estava presente nas centenas de pessoas em situação de calçada e na pureza de um olhar esperançoso  nas mãos postas ao rezar  baixinho e nos corpos cansados que carregam a esperança.
“A missa é um momento importante para toda a comunidade, mas especialmente para os nossos irmãos de rua. São famílias e pessoas em situação de rua que anseiam por este momento mais centralizado para viver essa conexão com Deus. São pessoas que vivem diariamente  na invisibilidade, vivenciam o olhar da indiferença e da rejeição. A Missa do Galo, celebrada aqui na praça, em via pública é importante porque mostra a presença  de Deus no meio de nós, como o nosso Papa Francisco é consistente, sempre nos  diz: tudo está interligado”, refletiu Marcos, enquanto fazia os  ajustes finais na praça para a grande festa.
“A Cáritas vai além do suporte nestas ações a pastoral do Povo de Rua, leva a mensagem evangélica, reforçando a solidariedade através de todas as pastorais que formam essa rede. A celebração do Natal junto e para ele  é  um momento muito especial para nós, toda a igreja de Aracaju. É um elemento muito representativo do Natal com aquelas pessoas que sofrem, que sentem fome e sede de alimentos e de justiça, de trabalho e de casa. Nesta ação fortalecemos o nosso projeto do bem viver”, enfatizou Paulo.
Ao final da celebração foram distribuídas as marmitas, 200 cestas básicas que as pastorais organizaram, kits de higiene e o mais importante, o momento de afeto e escuta.
Esta foi uma noite de Natal inesquecível para mim e o Walter, que decidimos passar esse momento na cidade de Aracaju junto ao povo. Nós acreditamos e atuamos na luta pela construção do bem viver dos povos, da cidade, do campo, das florestas e das águas. Assim vamos seguindo os passos de Jesus.
A sintonia da rede solidária

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