Romeiros e Romeiras caminharam entre os escombros de um bairro inteiro destruído pela enchente em Arroio do Meio
Por Marcos Antonio Corbari
Instituto Cultural Padre Josimo
Cada passo adiante era um desafio proposto a cada um e cada um dos cerca de 10 mil romeiros e romeiras que percorreram os cerca de 2,5 km do trajeto da 47ª Romaria da Terra. Um desafio imposto não apenas pelo sol escaldante em meio a mais uma onde de calor que castiga o Rio Grande do Sul (RS) e elevava a sensação térmica da manhã da terça-feira (04) a impressionantes 45 graus, mas sim pelo que se pôde ver no bairro Navegantes, o mais castigado pelas enchentes de setembro de 2023 e maio de 2024 na cidade de Arroio do Meio. As orações do povo, as reflexões a partir do carro de som e os tradicionais cantos da Romaria contrastavam com o cenário de casas destruídas, escombros espalhados pelas laterais das ruas, escolas, postos de saúde, estabelecimentos comerciais… A destruição quase total do bairro trouxe um elemento novo para quem colocou o pé na estrada para caminhar com os atingidos e atingidas pelas reincidentes tragédias climáticas a que o estado do Rio Grande do Sul foi submetido: a Pedagogia do Olhar.
“As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver um mundo melhor. Aprendemos palavras para melhorar os olhos”, ensina o educador Rubem Alves em um pequeno texto em que explica a ideia da Pedagogia do Olhar. “Quando a gente abre os olhos, abrem-se as janelas do corpo, e o mundo aparece refletido dentro da gente”, acrescenta. Para aquelas pessoas, o que estava a sua volta em cada passo, refletia dentro de si como um grito que ainda que silenciado, soava ensurdecedor. As histórias interrompidas, as vidas perdidas, os sonhos levados pela água ensinavam por si mesmos. E ensinavam. E desafiavam. O que está ali demonstra que ainda há muito a ser feito e, se a tragédia já não estampa mais o topo dos noticiários, ainda é vivida a cada dia pelas pelas pessoas que estavam ausentes daquele espaço naquele momento.
Foi muito pertinente a lembrança evocada pelo Cardeal Dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), atualizando o desafio feito pelo Papa Francisco quando esteve junto dos movimentos sociais na Bolívia, em 2015 e afirmou: “Terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs são direitos sagrados. Vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado em toda a terra”.
“A Romaria da Terra repercute esse desejo do Santo Padre. Estamos em uma região que foi extremamente marcada pela tragédia climática, toda essa região foi gravemente atingida, então celebrar essa romaria da terra neste pedaço de chão, em Arroio do Meio, é fazer memória daquilo que aconteceu e ao mesmo tempo chamar atenção, promover consciência a respeito da necessidade de todo carinho, todo respeito e comoção com a casa comum” afirmou Dom Jaime em entrevista à TV Aparecida. “A casa é comum, ela não pode ser de alguns, todos tem direito de viver com dignidade e casa, teto e trabalho são condição mínima para uma vida digna”, frisou. Para ele a Esperança é a palavra de ordem para o momento, relembrou São Paulo citando que ela, a esperança, não decepciona: “E nós somos peregrinos de esperança, é nela que caminhamos por dias melhores no contexto social, político, econômico onde realmente o bem comum seja o grande motor das nossas buscas, das nossas construções enquanto sociedade democrática”, completou.
Em tom de denúncia, Dom Itacir Brassiani, bispo da Diocese de Santa Cruz do Sul, escreveu em seu blog Nazareth refletindo sobre o que foi vivenciado no espaço da Romaria da Terra: “Acabamos de percorrer as ruas de uma cidade e as margens de um rio que escancaram feridas abertas. Aquilo que vimos são apenas algumas entre as muitas feridas que doem no corpo da terra e na vida do povo”. A diocese sob seu pastoreio é justamente a mais castigada pela última ocorrência climática. “Não caminhamos sem rumo, mas como peregrinas e peregrinos de esperança. Mas peregrinamos gemendo! Toda a criação geme por estar sendo devastada, triturada, envenenada e transformada em mercadoria”. Faz a pergunta incômoda que precisa ser feita: “Estas dores anunciam nascimento ou morte?” e já traz a resposta: Que sejam sinais de nascimento, depende da nossa responsabilidade, de uma conversão ecológica e social, estrutural e profunda”.
Depois de um dia de intensa programação com diversos momentos de forte emoção e intensa espiritualidade, bem como de elevada criticidade, foi lida a carta-compromisso da 47ª Romaria da Terra e entregues aos representantes da diocese de Santo Ângelo e do município de Carao os símbolos da Romaria. A região chamada “Missioneira” vai acolher os Romeiros e Romeiras da terra no simbólico território onde atuaram os primeiros Jesuítas em território gaúcho, na data tradicional do feriado de Carnaval, que em 2026 será no dia 17 de fevereiro. Confira a íntegra do documento compartilhado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e demais organizações que trabalharam juntas pela recém-encerrada 47ª Edição.
Leia na íntegra o Manifesto da 47ª Romaria do Rio Grande do Sul
RECONSTRUIR E CUIDAR DA CASA COMUM
MANIFESTO DA 47ª ROMARIA DA TERRA DO RS
Estamos vivenciando o Vale das Lágrimas: feridas e sofrimento nas lutas travadas nestes rincões gaúchos: Vales do Taquari, do Jacuí, do Rio Pardo, do Guaíba e da Lagoa dos Patos. Um chão Sagrado, com feridas vivas deixadas por eventos climáticos extremos.
Nesta Romaria da Terra e da vida, vimos braços estendidos sustentando homens e mulheres, crianças e idosos, comunidades e povos, rios e montanhas. Abraçamos as criaturas que nos cercam e somos abraçados por elas. Compreendemos que Deus vê e ouve tudo e não fica indiferente.
Deus não se conforma com uma Terra onde sobem gritos, lamentos e clamores. Deus não quer que os Vales do nosso Estado sejam vales de lágrimas. Ele não quer ver o fruto do suor do seu povo, engordar as contas bancárias de poucos. Ele não quer a terra devastada por um sistema produtivo agressivo e destruidor. Deus confia a nós sua decisão e seu desejo de fazer novos os Céus e a Terra. Uma nova Humanidade e uma Nova Sociedade.
Deus quer ver a Terra viva e os agricultores desfrutando daquilo que plantam!
As mudanças climáticas representam um dos maiores desafios do nosso tempo e exigem uma resposta coordenada e eficaz por parte dos poderes públicos.
Temos diante dos olhos as marcas da destruição que, como parte da humanidade, ajudamos a provocar, até mesmo pela nossa omissão. Temos na memória a experiência milenar das comunidades cristãs e do Deus Criador e Cuidador. Por isso, assumimos como compromissos decorrentes da nossa fé:
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Manter viva a memória das vítimas das catástrofes ambientais que perderam a vida ou foram gravemente atingidas;
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Ampliar e dinamizar as redes de apoio e solidariedade que se evidenciaram durante as catástrofes;
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Percorrer um caminho decidido e coerente de conversão ecológica, de cuidado e defesa da ecologia integral, que se impõe com a luta por justiça social e ambiental;
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Despertar nossas comunidades e lideranças eclesiais e políticas para a urgência de implementar medidas concretas de reconstrução e cuidado da Casa Comum e defesa e consolidação da democracia. participando ativamente de espaços de controle social ativo.
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Ocupar os espaços públicos de participação e controle social, como conselhos de políticas públicas, conferências, fóruns de debates, audiências públicas, para garantir que as políticas públicas enfrentem com seriedade a emergência climáticas e desigualdades sociais e econômicas mediante propostas e orçamentos claros.
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Desenvolver novas formas de agricultura saudável, articulada com a luta pela segurança alimentar e pela preservação do meio ambiente e intensificar a lutas por um acesso democrático à terra.
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Exercitar um estilo de vida mais simples e sóbrio, combatendo o consumismo doentio e a produção excessiva de resíduos ou descartes;
Na Encíclica Laudato Si, Papa Francisco destaca que a crise ecológica está interligada com a crise social, e, portanto, exige um compromisso coletivo, que inclui tanto a participação ativa da sociedade civil, quanto a implementação de políticas públicas eficazes.
Queremos ser ouvidos e colaborar com os poderes públicos, na construção de um projeto de curto, médio e longo prazo que resolva o problema das enchentes na região dos Vales e da Lagoa dos Patos. Permanecer omisso ou indiferente diante das crises que afetam a Terra e a humanidade é um pecado individual e social que exige conversão e reparação em toda a sociedade.
Arroio do Meio, 04 de março de março de 2025.
47ª Romaria da Terra do Rio Grande do Sul