Deslizamentos causados pela chuva na região metropolitana do Recife, em 2016. Foto: Sumaia Villela/Agência Brasil.
A Pastoral da Moradia e Favela Nacional vem apresentar o artigo elaborado por Luís Emmanuel, do Centro Dom Hélder, em que compartilha a situação de Recife, muito vulnerável às mudanças climáticas e frequentemente atingida pelas enchentes, que afetam duramente a população das periferias, enquanto os poderes públicos são omissos em sua atuação.
Leia o artigo: 
A cidade do Recife é um ponto focal no debate global sobre vulnerabilidades urbanas diante das mudanças climáticas. A discussão sobre mudanças climáticas tornou-se central presentemente à medida que eventos climáticos extremos, como enchentes, secas e tempestades, vêm se intensificando globalmente.

 

O Recife, com sua geografia vulnerável, é particularmente suscetível a tais mudanças. A urbanização desorganizada e acelerada e o aumento do nível do mar ampliam este quadro de vulnerabilidade. Os eventos extremos relacionados às mudanças climáticas têm se tornado cada vez mais frequentes e intensos, evidenciando um dos maiores desafios globais do século XXI. Fenômenos como ondas de calor, tempestades severas, secas prolongadas e inundações são manifestações diretas dessas mudanças, impactando diversas regiões de maneiras variadas. O aumento acelerado das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera, principalmente devido às atividades humanas, tem amplificado esses eventos, que afetam ecossistemas, economias e sociedades inteiras.

 

No ano de 2022, o Recife enfrentou uma série de eventos climáticos extremos que evidenciaram a vulnerabilidade da cidade às mudanças climáticas. Esses eventos desafiaram a infraestrutura urbana e expuseram as fragilidades na preparação para condições meteorológicas severas. Cartografar e entender a ocorrência desses eventos é crucial para desenvolver estratégias de mitigação eficazes. A capacidade de resposta da cidade foi testada frente a chuvas intensas, ventos fortes e marés altas, que juntos causaram prejuízos significativos à população e ao meio ambiente, destacando a necessidade urgente de políticas públicas robustas e de ações coordenadas para enfrentar tais desafios climáticos.

 

Foram 133 vidas de pessoas ceifadas neste evento. A cartografia dessas mortes aponta sempre para a periferia, abandonada pelas políticas públicas de planejamento urbano e de moradia adequada. Para essas pessoas, o Estado aparece apenas com o Corpo de Bombeiros no evento do desastre e com o veículo do IML para apanhar os corpos. O Estado promotor de direitos humanos e fundamentais é sempre omisso.

 

A política de abrigamento das pessoas desalojadas ou desabrigadas precisa de adequações urgentes. A equipe psicossocial do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (CENDHEC) constatou alto risco de violências contra crianças e adolescentes nos espaços de abrigamento, além da necessidade de preservar a integridade física, emocional e social das pessoas abrigadas e dar voz às mulheres nesses espaços.

 

O Dossiê Popular sobre a Negligência do Poder Público e os Impactos das Chuvas no Recife e Região Metropolitana, elaborado por 11 entidades da sociedade civil, entre elas o CENDHEC, 60% dos locais fortemente atingidos são favelas, 67% são de alta ou muito alta vulnerabilidade, 84% são locais com mais de 60% de moradoras e moradores negros ou pardos, 94% dessas moradias têm mulheres negras como moradoras.

 

Portanto, não é apenas a chuva, é o Estado, suas autoridades e as políticas públicas ausentes desses territórios.

 

Os eventos climáticos extremos não se resumem às inundações no Recife. As águas chamam muita atenção porque isolam muitos pontos da cidade, mas matam apenas na periferia. O excesso de calor durante o verão é outro dado, que parece passar despercebido, mas não passa para as mulheres periféricas, responsáveis pela casa e pelas crianças.
Um levantamento preliminar feito pelo CENDHEC em Nova Descoberta, zona norte do Recife, em outubro de 2023, indica que o interior das casas em ocupações pode chegar aos 46°C, entre as 12h e as 14h. A área externa dessas casas, leia-se, a calçada de pedestre ou a própria rua, chegando a 43°C.  Em termos de comparação, a sede do CENDHEC, localizada também na zona norte, em área com arborização, gramado e ventilação natural, chega a atingir 36°C e 39°C, respectivamente.

 

O racismo ambiental é um fenômeno evidente nesses casos. Seja pela água, seja pelo calor, os eventos extremos são muito mais impactantes nas periferias, sobre as mulheres e sobre as pessoas pardas e pretas. Enfrentar as mudanças climáticas não basta apenas megaprojetos de adaptação e mitigação ou de resiliência, significa também superar essas exclusões interseccionais.

 

Esse quadro é um enorme desafio às políticas públicas de desenvolvimento urbano e aos instrumentos jurídicos de viabilização dessas políticas. A política nacional de desenvolvimento urbano, o sistema nacional de desenvolvimento urbano, a política de regularização fundiária urbana e rural, a política de habitação de interesse social, as políticas de enfrentamento às mudanças climáticas, o acesso à água de qualidade e saneamento, os planos diretores, as lei de acesso à terra urbana e rural, as leis para construção de habitações, enfim, todas essas políticas e instrumentos legais devem convergir em soluções duradouras e inclusivas, que tragam dignidade e plenitude de vida às pessoas e respeito à natureza. Lembrando sempre que não temos um segundo planeta para substituir o que estamos destruindo. 
*Luis Emmanuel Barbosa da Cunha, advogado do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC, coordenador do Programa Direito à Cidade, especialista em direitos humanos internacionais, mestre e doutor em direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).