40 anos de caminhada da Pastoral dos Nômades, que é ponte para o povo cigano, que sofrem com estigmatização e lutam por seus direitos
Por Cláudia Pereira | Cepast-CNBB
Completando 40 anos de atuação em 2025, a Pastoral dos Nômades da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) acolhe grupos sociais como ciganos, circenses e parquistas. A ação da pastoral é dedicada ao serviço da evangelização e da inculturação, valorizando o convívio com o ambiente nômade e buscando evitar paternalismo ou dominação cultural. Entre os muitos desafios enfrentados, além das questões de direitos, as mudanças climáticas têm impactado significativamente esses povos nos últimos anos. Circos, especialmente na região Sul do país, enfrentam dificuldades para manter suas lonas devido aos fortes temporais dos últimos anos, após a tragédia no Rio Grande do Sul em 2024.
Neste mês de maio, a Pastoral dos Nômades intensifica a visibilidade da pauta do povo cigano. O dia 24 de maio, Dia Nacional do Povo Cigano, data instituída em maio de 2006 –uma conquista para o povo cigano, que também celebra sua padroeira, Santa Sara Kali.
Os Povos Ciganos integram o grupo de povos e comunidades tradicionais do Brasil, com origem no norte da Índia. Compostos por três principais etnias – Rom, Calon e Sinti –, os ciganos enfrentaram perseguições históricas até sua chegada à América, uma realidade que, de certa forma, persiste. No Brasil, sofrem diversas violações de direitos e preconceito. Diante disso, as comunidades ciganas buscam se organizar em associações, e a Pastoral dos Nômades atua como parte dessa rede de apoio. Estima-se que mais de 500 mil ciganos vivem no país, distribuídos por 21 estados, com maior concentração em Minas Gerais, Goiás e Bahia. Caracterizados pelo nomadismo ou seminomadismo e um espírito viajante, os povos ciganos por vezes cultivam um sentimento de não pertencimento a um local fixo. Este traço nômade estrutura suas comunidades com base na coletividade, no respeito à liberdade e à natureza.
Apesar de sua rica cultura, com crenças, danças e um modo de vida particular, o povo cigano enfrenta diariamente preconceito e marginalização, sendo frequentemente estigmatizado. Grupos urbanizados também são vítimas de aporofobia, a discriminação contra pessoas pobres. É importante ressaltar que atividades tradicionais ciganas incluem práticas do universo místico, como quiromancia (leitura das mãos), cartomancia, tarô e o uso de ervas medicinais para cura.
Para celebrar os 40 anos da Pastoral dos Nômades e o Dia Nacional do Povo Cigano, comemorado neste 24 de maio, a reportagem da Cepast-CNBB entrevistou dois ciganos integrantes da pastoral, de diferentes etnias e regiões; Cícero Pereira, da etnia Calon, atua na diocese de Cajazeiras (PB) e integra o Conselho da Pastoral dos Nômades há quase três anos. Para ele, a Pastoral vai além do acolhimento na igreja, representa um espaço de integração e comunhão, refletindo uma “igreja em saída”.
Rosecler Winter, da etnia Sinti, residente no Rio Grande do Sul, também integra a Pastoral dos Nômades. Ela atua no Comitê de Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, na Associação Cigana Itinerante do estado, e é envolvida em diversos movimentos sociais. Segundo Rosecler, a comunidade Sinti é mais reservada e, diferentemente de alguns grupos Calon, tende a ter moradias permanentes em vez de acampamentos fixos. Na região Sul, devido à influência da colonização alemã, muitos preferem não se identificar como ciganos para evitar preconceito. Sua trajetória iniciou no ativismo por políticas públicas para os povos ciganos, engajando-se nas articulações para o decreto do Dia Nacional. Aproximou-se da Pastoral dos Nômades em 2016.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista:
Foto: Acervo pastoral dos Nômades
Entrevista com Cícero Pereira – Etnia Calon (PB)
Cepast-CNBB: Como a Igreja Católica tem contribuído para o povo cigano, considerando estes 40 anos da Pastoral dos Nômades e o legado do Papa Francisco de promover a acolhida nas pastorais sociais?
Cícero Pereira: O Papa Francisco representa uma nova era para a Igreja, abrindo não apenas aos ciganos, mas a todos os filhos de Deus. Ele buscou redescobrir e valorizar a cultura cigana, reconhecendo sua contribuição para a Igreja. Essa postura é um avanço significativo, embora papas anteriores, como Paulo VI e João Paulo II, já defendessem um pedido de perdão e a inclusão ao povo cigano.
Cepast-CNBB: Como você avalia essa caminhada da Igreja junto ao Povo Cigano?
Cícero Pereira: Nos últimos 35 anos, percebemos um avanço significativo na participação do povo cigano na pastoral. Há uma maior integração na estrutura da Igreja, com contribuições em contextos sociais e políticos. Hoje, muitos agentes com ascendência cigana estão presentes em diversas esferas eclesiásticas, lutando pelos direitos da comunidade. A pastoral é uma base importante para esse envolvimento. Vemos o povo cigano, o povo nômade, em diversas estruturas da Igreja, em níveis diocesano, regional e nacional, e isso nos fortalece muito.
Cepast-CNBB: Nos avanços nestas quatro décadas de caminhada junto à Igreja, o que você aponta através das ações concretas, especialmente para o povo cigano?
Cícero Pereira: A maioria do povo cigano no Brasil é católica. A pastoral tem sido fundamental na sensibilização da sociedade sobre nossa cultura, destacando que ser cigano é uma identidade cultural, não uma religião. Ela promoveu a inclusão em diversas áreas, como educação e assistência social, garantindo, por exemplo, acesso à escola e ao Bolsa Família, além de incentivar a preservação cultural. A pastoral também contribuiu para o fortalecimento de associações e lideranças, resultando em melhorias concretas na vida das comunidades, como acesso à saúde e projetos de desenvolvimento social. Estes esforços, ao longo de quatro décadas, geraram frutos visíveis e positivos, guiados pela fé e pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, para manifestar aquilo que nos é intrínseco.
Cepast-CNBB: Sobre direitos e conquistas, além das cotas nas universidades e direitos básicos constitucionais, o que precisa ser priorizado para o Povo Cigano no Brasil?
Cícero Pereira: O decreto que instituiu o Dia Nacional do Povo Cigano é uma conquista importante para o reconhecimento da nossa cultura no Brasil. Nós, ciganos, também temos nossa contribuição histórica e social desde a colonização. Mas, faltam políticas públicas concretas, como cotas educacionais efetivas, que garantam nossa inclusão, especialmente no ensino superior. As cotas existem no papel, mas na prática muitas vezes não são aplicadas. Embora algumas instituições tenham ações positivas, há uma necessidade urgente de iniciativas governamentais mais abrangentes para corrigir a dívida histórica do Estado conosco. Além disso, ainda enfrentamos precariedade em termos de empregabilidade e saneamento básico nas comunidades.
Cepast-CNBB: Um dos desafios enfrentados pela população cigana diariamente é o preconceito. Como abordar os estereótipos que cercam os ciganos para promover sensibilização social?
Cícero Pereira: O Brasil é um país preconceituoso. Um exemplo são os estigmas de que o povo cigano é ladrão. Não faz muito tempo, o dicionário Aurélio trazia essa definição. Onde estava o dicionário Aurélio? Nas escolas, na formação educativa das crianças que hoje são adultas. É preciso que a sociedade conheça o povo cigano, nossa cultura, nosso jeito de ser e viver. Se muitos de nós estão como pedintes ou em vulnerabilidade, é porque a sociedade, de fato, nos excluiu – como o Papa Francisco mencionou sobre os que estão nas periferias existenciais e geográficas. Acredito que a sociedade deve corrigir isso nos conhecendo, “esvaziando-se de si para o encontro do outro”, para tentar absorver o máximo. Sem isso, não venceremos essa barreira. Também acho que, como ciganos, ainda precisamos melhorar nossa organização para enfrentar esses desafios.
Cepast-CNBB: Quais são as referências da etnia do povo cigano Calon, da qual você pertence?
Cícero Pereira: Minha cultura e a origem do meu povo, os Calon no Brasil, têm raízes ligadas a diversas influências, com possíveis origens no Egito ou na Índia, e estamos aqui desde 1500. Meu bisavô, Pedro Benício Maia, foi chefe, o último chefe reconhecido. Hoje, estamos enraizados aqui na cidade de Sousa (PB), que é considerada a maior comunidade cigana da América Latina, desde os anos 80. A partir dessa década, por meio de parcerias e movimentos políticos, conseguimos um terreno onde inicialmente acampamos; atualmente, a maioria de nós tem casa, um lugar com estrutura. O que nos difere de outras etnias ciganas são, principalmente, nossa língua e nosso modo de viver. Nós, o povo Calon, temos a cultura da dança, praticamos a quiromancia, a cartomancia, a venda e a troca. Gostamos de cantar, dançar, gritar e de estar mais livres. Vivemos com o básico e, diferentemente de outras etnias, como os Kalderash que têm sua cultura na produção de caldeirões, nós somos um povo que vive do mais básico, um povo mais pobre.
Cepast-CNBB: Qual mensagem você deixa para celebrar o dia 24 de maio na perspectiva do amanhã para o Povo Cigano Brasileiro?
Cícero Pereira: Para este Dia Nacional do Povo Cigano, e para refletirmos juntas e juntos, destaco a importância do comprometimento com o próximo e a necessidade de um olhar mais humano e compassivo para as particularidades de cada pessoa e cultura. É um chamado à Igreja para continuar sua missão de inclusão, especialmente nas periferias geográficas e existenciais, mantendo-se fiel à visão do Papa Francisco de ser uma “igreja em saída”, uma igreja que se “enlameia” com as realidades do povo. Precisamos trilhar novos caminhos, sem esquecer que somos todos parte da mesma comunidade, independentemente das diferenças. Nossa visão é de uma Igreja sinodal e unida, que busca promover a esperança e a solidariedade.
Foto: acervo pessoal – Rosecler Winter
Entrevista com Rosecler Winter – Etnia Sinti (RS)
Cepast-CNBB: A Pastoral dos Nômades se torna um espaço de representatividade e apoio para a valorização do povo cigano, ajudando a construir pontes entre a fé e a resistência cultural. Como você avalia a realidade da sua região desde que passou a integrar a pastoral?
Rosecler Winter: Para nós, ciganos, a Pastoral é como uma ponte segura, um amparo fundamental. Ela nos oferece um espaço que muitas vezes nos é negado, pois, em vários lugares, inclusive aqui no Sul, ainda enfrentamos dificuldades para entrar em igrejas. Muitos de nós somos católicos; historicamente, a fé católica é nossa primeira referência espiritual, uma tradição milenar. Mas, quando encontramos portas fechadas ou somos barrados, como já aconteceu comigo, quando fui intimidada por seguranças enquanto rezava e depois impedida de acender velas – nesse sentido, alguns acabam procurando outras religiões. É por isso que, em certas regiões, vemos o crescimento de igrejas não católicas. Em nossa comunidade, por exemplo, o estigma ainda é muito presente.
Cepast-CNBB: Para além de iniciativas que visam integrar mais a participação junto à Igreja na defesa de direitos dos Povos Ciganos, como a comunidade se mobiliza para combater a discriminação e a estigmatização?
Rosecler Winter: A Pastoral tem desempenhado um papel importante na promoção da conscientização e no compartilhamento de informações sobre nossos direitos, especialmente em relação às políticas públicas. Um exemplo foi o lançamento do plano nacional para os povos ciganos, divulgado e discutido em reuniões e assembleias. A Pastoral ajuda a desmistificar preconceitos e a representar a comunidade cigana de forma positiva, facilitando o diálogo e a integração com novos padres e a comunidade em geral. A catequese também tem sido uma forma de fortalecer e disseminar nossa cultura no Brasil.
Cepast-CNBB: A Pastoral dos Nômades celebra 40 anos, mas a sociedade ainda tem preconceitos e desconhece a cultura do povo cigano. Como é ser pertencente ao povo cigano nestes tempos atuais?
Rosecler Winter: Ser cigano é, em primeiro lugar, ser livre, e essa liberdade pode gerar medo e preconceito. A liberdade de crença e nosso modo de viver, mantendo nossa cultura por milênios apesar da discriminação, é um aspecto valioso. Essa liberdade, porém, pode dificultar a compreensão por parte de outros, que nos associam a estereótipos negativos. Iniciativas que promovem o diálogo entre ciganos e não ciganos são essenciais para quebrar barreiras, mostrando que também temos fé e valores como a honestidade.
Cepast-CNBB: Você considera a comunidade do povo cigano no Brasil totalmente organizada ou ainda é um grupo social que precisa ser fortalecido organizacionalmente?
Rosecler Winter: Ainda falta muito. Temos nossa organização, mas precisamos de muito mais, porque no processo de criação de políticas públicas, em algumas situações, fomos usados politicamente. Mas, sobre a luta organizada dos povos ciganos no Brasil, avançamos no reconhecimento e na organização em busca de políticas públicas. Apesar de haver cerca de 40 associações autênticas de ciganos no país, ainda existem desafios, como a apropriação cultural por pessoas de fora. Por isso, que falo da necessidade de mais organização e união do povo cigano no Brasil.
Cepast-CNBB: Está em trâmite na Câmara Federal o Estatuto do Povo Cigano (PL 1387/22). Qual é a sua opinião em relação ao Estatuto? Como ele vai ajudar a realidade desse grupo social?
Rosecler Winter: Desde 2015, estamos batalhando por esse projeto, o Estatuto dos Povos Ciganos. Sinto que é uma luta constante: damos um passo à frente e logo parece que retrocedemos. Já são quase dez anos nessa luta. O projeto passa de mão em mão entre os responsáveis, e quando achamos que finalmente vai avançar, a situação emperra novamente, como se não houvesse um interesse maior para que ele se concretize. Para nós, é muito frustrante, pois estamos esperando por uma última assinatura há uns dois ou três anos. Esse Estatuto é uma base muito importante para nós, um documento que nos daria um direcionamento. Vemos que existem leis, portarias e decretos, mas o grande problema é que não são cumpridos. Um exemplo de avanço é o plano nacional que foi lançado no ano passado (2024). Mesmo com esse plano, o Estatuto dos Povos Ciganos continua sendo muito importante, pois ele é específico ao determinar ações afirmativas para nossa população, prevendo o acesso à terra, à moradia, ao trabalho, o combate à discriminação e impondo ao Estado o dever de garantir igualdade de oportunidades e políticas públicas para nós.
Cepast-CNBB: Como você e a comunidade vão celebrar o dia 24 de maio?
Rosecler Winter: Sou devota de Santa Sara Kali e celebro o dia 24 de maio, quando se homenageia Santa Sara e igualmente Nossa Senhora Aparecida. Já fizemos vários esforços para promover uma comemoração municipal mais abrangente, mas atualmente as celebrações são em família e na comunidade. O Dia Nacional dos Povos Ciganos está no calendário festivo da cidade de São Leopoldo (RS), mas ainda não há uma celebração forte e unificada prevista. Portanto, vamos festejar com esperança, vamos festejar “esperançando”.
Celebrações
Neste mês, a Pastoral dos Nômades em todo o país celebra o Dia Nacional dos Povos Ciganos promovendo visitas a acampamentos e escolas para incentivar a celebração da cultura cigana, como parte das festividades pelos 40 anos da organização. Na comunidade cigana de Sousa (PB), considerada a maior da América Latina, foi iniciado um trabalho com crianças em uma escola infantil para apresentar as tradições e a importância de manter viva a cultura cigana, destacando o desafio de preservar sua herança e identidade. Também foi lançado o curta-metragem intitulado “O céu é o meu teto e a terra é a minha pátria”, que aborda a liberdade do povo cigano. A produção, gravada na comunidade cigana de Sousa (PB), dá voz à memória, identidade e resistência do povo cigano, com direção de Cícero Pereira de Sousa e idealização de Raty Calon.