A Justiça Restaurativa surge como uma resposta eficaz ao paradigma de punição. Mais do que uma técnica de resolução de conflitos, ela é um movimento filosófico e político que visa a reparação de danos, o empoderamento das vítimas e o reconhecimento das responsabilidades de forma coletiva e restauradora.
Por Vera Dalzotto*
Esta análise propõe uma reflexão crítica sobre a aplicação da Justiça Restaurativa (JR) no sistema penal brasileiro como instrumento legítimo de remissão de pena e de combate às violências estruturais e institucionais presentes nas prisões. A proposta defende que, além de reduzir danos psicológicos e sociais impostos pelo encarceramento, as práticas circulares — como metodologia restaurativa — oferecem espaços seguros de escuta e expressão, promovendo reintegração social e cura coletiva.
Apoiada pela legislação nacional e internacional, e fortemente incentivada por organismos como a Pastoral Carcerária Nacional, a Justiça Restaurativa se revela como alternativa viável ao modelo punitivista, contribuindo para a Agenda Nacional pelo Desencarceramento e o enfrentamento à política de aprisionamento em massa.
O Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo, com uma realidade marcada por superlotação, tortura, degradação humana e reincidência. Diante desse cenário alarmante, a Justiça Restaurativa surge como uma resposta eficaz ao paradigma de punição. Mais do que uma técnica de resolução de conflitos, ela é um movimento filosófico e político que visa a reparação de danos, o empoderamento das vítimas e o reconhecimento das responsabilidades de forma coletiva e restauradora.
A Justiça Restaurativa como Política Pública
A Lei nº 13.140/2015, que trata da mediação como meio de solução de conflitos, e a Resolução nº 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, consolidam legalmente a prática restaurativa no Brasil. A Resolução orienta a implementação da JR com base em princípios como voluntariedade, corresponsabilidade e participação ativa de todos os envolvidos.
O Sistema Prisional como Espaço de Violência Estrutural e Psicológica
O cárcere brasileiro é um dos principais produtores de sofrimento psíquico e marginalização social. A violência estrutural — definida como aquela que está incorporada às instituições e aos arranjos sociais, econômicos e políticos — manifesta-se por meio da precariedade nas condições de encarceramento, da ausência de assistência jurídica e de saúde, e da negação de direitos básicos.
Além da violência física, há o sofrimento psicológico e existencial causado pela desumanização, pela exclusão familiar e comunitária, e pelo estigma social que o/a sobrevivente carrega. O sistema não ressocializa, ao contrário, reproduz ciclos de exclusão e reincidência.

Práticas Circulares como Espaços de Escuta, Cura e Redução de Danos
As práticas circulares são metodologias ancestrais de diálogo, resgatadas e sistematizadas como ferramentas centrais da Justiça Restaurativa. Inspiradas em tradições indígenas e comunitárias, os círculos criam espaços seguros e horizontais para que indivíduos possam compartilhar experiências, dores, responsabilidades e esperanças. Em ambientes prisionais, essas práticas revelam-se revolucionárias. Elas permitem que as pessoas privadas de liberdade:
Reconheçam o impacto de suas ações.
Acessem suas histórias pessoais e traumas.
Reaprendam formas saudáveis de se relacionar.
Os círculos restaurativos são também espaços de reconexão espiritual, de empoderamento coletivo e de reconstrução da dignidade humana.
A Remissão de Pena através da Justiça Restaurativa: Um Direito Possível e Urgente
A remissão de pena está prevista na Lei de Execução Penal (LEP) – Lei nº 7.210/1984 -, especialmente nos artigos 126 e 127, que admitem remissão por estudo e trabalho.
Compreender as práticas restaurativas como formas legítimas de remissão exige uma ampliação do conceito de “atividade educativa” presente na LEP.
Neste sentido, diversos estudos e experiências têm mostrado que:
A participação em círculos restaurativos contribui para o amadurecimento emocional.
Tais práticas promovem a reinserção social e a reconstrução dos vínculos comunitários e familiares
A Pastoral Carcerária Nacional vem sistematizando mais de 100 círculos com temáticas específicas, aplicáveis a diversos contextos carcerários, além de 24 círculos voltados à libertação da dependência química, articulando saúde mental, espiritualidade e responsabilização.
O Enfrentamento da Violência Sistêmica pela Justiça Restaurativa
Num contexto em que a violência cresce nas periferias e centros urbanos, e onde a política pública hegemônica ainda é baseada no aprisionamento, a Justiça Restaurativa se apresenta como um contraponto ético e político.
A proposta restaurativa:
Rompe com o ciclo da violência punitiva.
Favorece a construção de comunidades resilientes e cuidadoras.
Envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na transformação do conflito em aprendizado.
Exemplos Concretos da Eficácia das Práticas Restaurativas
Experiências em diversos estados brasileiros — como Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo — mostram a potência das práticas circulares:
Em Porto Alegre, um projeto-piloto em unidades de internação de jovens infratores revelou queda expressiva na reincidência após participação em círculos restaurativos.
Em São Paulo, mulheres privadas de liberdade relataram transformações pessoais profundas após ciclos de escuta que abordavam relações familiares, violência de gênero e perdão.
No Paraná, o Judiciário reconheceu a participação em práticas restaurativas como critério para remissão de pena, estabelecendo um precedente promissor.
A Pastoral Carcerária Nacional tem papel central na articulação entre a fé cristã e vida, a promoção da dignidade humana em um sistema penal altamente desumano. Como parte da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, a Pastoral defende:
A extinção das penas privativas de liberdade para crimes sem violência.
A promoção de penas alternativas.
A ampliação da Justiça Restaurativa como política de Estado.
O uso das práticas circulares como forma legítima de remissão e reintegração social.
A sistematização das práticas em manuais, oficinas e roteiros de círculos temáticos faz da Pastoral uma referência.
Para que a JR seja amplamente reconhecida como forma de remissão, é necessário:
A atuação proativa do CNJ, Ministérios Públicos e Defensorias na regulamentação do uso das práticas restaurativas.
A formação de facilitadores reconhecidos institucionalmente ao qual a PCR nacional vem investindo ao longo dos últimos anos
A inclusão da JR nos Planos Nacionais de Execução Penal.
A integração com políticas públicas de saúde mental, cultura e educação.
A Justiça Restaurativa e as práticas circulares representam não apenas um método de resolução de conflitos, mas uma verdadeira revolução na forma de compreender o crime, o castigo e a dignidade humana. Seu uso como instrumento de remissão de pena não só é legítimo como necessário para a construção de uma justiça mais inclusiva.
Em tempos de endurecimento penal e crescimento da violência, desencarcerar é um ato de coragem e justiça social.
A experiência da Pastoral Carcerária Nacional, somada aos avanços da Política Nacional de Justiça Restaurativa, aponta caminhos concretos para um sistema mais justo e restaurador. É urgente que os órgãos competentes reconheçam e promovam essas práticas como políticas públicas, a fim de garantir a redução de danos causados pelas grades e abrir novos horizontes para aqueles que hoje vivem a dor do cárcere.
Vera Dalzotto é assessora Nacional da Pastoral Carcerária para a questão da Justiça Restaurativa