“Deus é um cara gozador,
adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo,
tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado
me botar cabreiro
Na barriga da miséria,
eu nasci brasileiro…”
(Chico Buarque: canção Partido Alto)

 

O pluralismo cultural e a diversidade religiosa são características marcantes do mundo atual. Sempre existiram nos mais diversos continentes. No entanto, em um mundo dominado pelo colonialismo social e cultural, as culturas e tradições espirituais dos povos originários e das comunidades negras eram ignoradas, vistas com preconceito cultural e religioso.
Conforme os censos mais recentes, no Brasil, diminuiu o número das pessoas que se declaram católicas, aumentou a proporção de pentecostais e das pessoas que se dizem sem Igrejas. É missão da Pastoral de Moradia apoiar as pessoas sem teto e as que moram sem condições mínimas de segurança e dignidade, assim como apoiar a união de moradores e todos os processos comunitários por moradia. Nesse caminho, a Pastoral precisa se colocar em diálogo com outras Igrejas e religiões na missão que lhe é própria e no testemunho do projeto divino que nos reúne a todos na esperança de um mundo novo e transformado.
Gustavo Gutierrez afirmava: “Optar pelo pobre é optar pelo povo marginalizado e explorado e os grupos dominantes. É tomar consciência do conflito social e colocar-se a favor dos deserdados. É entrar no mundo da raça, da cultura e da classe social oprimida e se solidarizar com seus interesses e lutas”¹.

Breve olhar para as diferentes realidades

Em muitos bairros de periferia e comunidades, alguns grupos pentecostais conseguem se inserir, até mais do que nós e se distinguem por um proselitismo com o qual não podemos concordar (como se a missão consistisse em trazer pessoas para a Igreja) e também por uma forma de compreender a fé que afasta as pessoas do compromisso da cidadania e as torna presas fáceis de líderes inescrupulosos que enriquecem à custa dos fieis pobres. Na política, esses líderes fortalecem os grupos que lutam contra os
direitos das classes trabalhadoras.
Não podemos generalizar e confundir atitudes de certos líderes com posições oficiais dessa ou daquela Igreja. Hoje, no Brasil, existem vários coletivos de evangélicos progressistas e há grupos evangélicos e pentecostais que participam de forma corajosa e profunda das pastorais sociais e dos movimentos populares.
Além dos grupos pentecostais e neopentecostais, por todo o Brasil, se espalham grupos de tradições afrodescendentes que são diversas. Há várias nações de Candomblé, de Tambor de Mina, de Xangô, da Jurema Sagrada e diferentes tipos de Umbanda e de outros grupos de espiritualidade afro. Além disso, há grupos ligados a Xamanismos urbanos e a Pajelanças, de matriz indígena.
Como escreveu Leonardo Boff: “No Brasil, existem atualmente milhões de pessoas de raça indígena e negra que estão entre os mais pobres dos pobres. (…) Elas foram escravizadas e, uma vez libertas, foram mantidas em novas formas de escravidão. (…) Submetidas aos senhores de escravos católicos, foram forçadas a aceitar o Catolicismo. A fé cristã lançou raízes na alma dessas pessoas e suas comunidades. A herança de suas religiões ancestrais continuou dentro delas como a fé de sua alma e dos seus antepassados. As religiões xamânicas e afrobrasileiras formam espaço de resistência à dominação. Dão às pessoas sentido de vida e liberdade. (…) Dentro das igrejas, a herança cultural indígena e negra gerou uma forma própria de ser cristão. Não existe Cristianismo puro. O Catolicismo europeu é fruto de uma síntese entre o Evangelho e a cultura greco-romana. Assim também, ao se encontrar com a fé cristã, a herança indígena e afro não se apagou. Mesmo discriminada, resistiu e formou dentro das igrejas um rosto indígena e negro do Cristianismo”².
No evangelho, Jesus diz: “Pelos frutos conhecereis a árvore” (Mt 7,24). Foram essas tradições espirituais que, nos tempos da escravidão, possibilitaram as pessoas escravizadas manterem a consciência da sua dignidade humana, mesmo em meio a tanta violência e desumanidade. Elas foram os instrumentos de comunitarização e de resistência espiritual. Só por isso, já mereceriam todo o nosso apoio e a nossa admiração. No entanto, além disso, temos de reconhecer que, durante séculos, a nossa Igreja se aliou
ao poder colonial e condenou e perseguiu as religiões indígenas e negras. Por isso, a Igreja tem uma dívida histórica e moral com as religiões negras e indígenas.
Atualmente, em todo o Brasil, comunidades de culto afro e também indígena têm sido diariamente vítimas de violência e de racismo religioso. Terreiros de Candomblé têm sido incendiados e destruídos. Além de tal situação ser crime perante a lei brasileira, que promete respeito e liberdade a todas as religiões, esses ataques feitos em nome de Jesus Cristo são um contratestemunho terrível e falam mal de Deus, do Cristo e da Igreja.
Há anos, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) tem procurado apoiar as comunidades negras e indígenas que têm sido vítimas de ataques e tem procurado reconstruir as casas destruídas. Como princípio tem afirmado: “Em nome de Cristo, eles destroem. Em nome de Cristo, nós reconstruímos”.
Não tem sido fácil esse diálogo com comunidades pentecostais e neopentecostais. É claro que só se pode dialogar com quem quer dialogar, mas nossa atitude deve ser sempre de abertura espiritual e respeito ao diferente.
Em 1999, na tentativa de entender os motivos que contribuem para a criação quase cotidiana de novas Igrejas nas periferias e comunidades, os cineastas João Moreira Salles e o jornalista Marcos Sá Corrêa acompanharam, durante oito meses, a construção da Casa de Oração Jesus é o General em uma ocupação clandestina no bairro de Santa Cruz, zona oeste carioca, além de analisar as consequências geradas pelo templo evangélico na vida da população que o cercava³.
Quando perguntava a uma das primeiras senhoras que aderiu à comunidade, ela lhe respondeu: “Nós viemos da roça e aqui não tínhamos amigos. Meu marido não conseguiu emprego. Chegava em casa agressivo e meu filho adolescente começou a sair com jovens que não conhecíamos. Aqui na comunidade, podemos confiar nas pessoas, meu marido deixou de beber e o meu filho está aprendendo a tocar e cantar no coral que vai se formar… E, mensalmente, recebemos uma ajuda da comunidade até conseguirmos uma renda mínima”.

O que fazer?

A Pastoral da Moradia deve fazer uma distinção entre ecumenismo e ecumenicidade. Em um documento de 1969, a CNBB fazia a distinção entre ecumenismo e ecumenicidade⁴. Enquanto o ecumenismo diz respeito à atividade intereclesial ou interreligiosa, a ecumenicidade é mais uma dimensão da fé e deve estar presente transversalmente em todo o nosso modo de ser e de agir. Corresponde profundamente ao conceito antigo de catolicidade em um sentido que vai além do eclesiasticismo⁵. A preocupação permanente, radical e profunda de ecumenicidade está ligada ao caráter laical da fé e ao reinocentrismo6 da nossa espiritualidade. Sem ela não há como superar o eclesiocentrismo católico-romano, evangélico e pentecostal.
Um pastor da Igreja que viveu no século II afirmava: “Para quemé cristão, nada do que é humano pode lhe ser estranho”. Desde aquela época muito antiga, a nossa Igreja se chamou a si mesma de “católica”. É um termo grego que significa universal, não no sentido de internacional e sim no sentido de abertura universal. A própria graça divina e salvação sempre vem até nós pela outra pessoa e pela outra comunidade de fé.
No século passado, um teólogo evangélico afirmava: “Deus está em mim para você e está em você para mim. O Deus que está em mim, para mim mesmo é fraco e é forte para você. O Deus que está em você é forte para mim e é fraco para você”. Isso que ele dizia em relação às pessoas também vale para as comunidades. É só se abrindo a outra comunidade que essa nossa pode viver uma profunda experiência espiritual. Quando o papa Francisco propunha sermos “Igreja em saída”, há nessa proposta a dimensão da ecumenicidade, ou seja, da abertura aos de fora.
Em 1991, o Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso e a Congregação para a Evangelização dos Povos publicou em Roma o Documento Diálogo e Anúncio. Esse documento propõe quatro formas ou etapas ou dimensões do diálogo e essa proposta serve tanto para a ação ecumênica junto a outras Igrejas, como ao diálogo e colaboração com outras religiões. Eis a proposta: “Existem formas diferentes de diálogo inter-religioso e de colaboração nossa com grupos de outras culturas e religiões. (…) Podemos resumi-las em quatro formas, sem que se precise estabelecer uma ordem de prioridade⁷:
a) O diálogo da vida
Neste âmbito, as pessoas se esforçam por viver o espírito de abertura e de boa vizinhança, compartilhando as suas alegrias e tristezas, os seus problemas e as suas preocupações. no plano da vida, das relações humanas e da amizade. Essa é a base de tudo. Cria-se confiança e testemunhamos que somos irmãos e irmãs.
b) O diálogo do serviço comum
Nesta etapa, as pessoas e comunidades cristãs colaboram em vista do desenvolvimento integral e da libertação do povo. Trata-se da inserção nos serviços sociais. Quando nos colocamos juntos nas lutas pelo que é direito de todos nos unimos e fortalecemos a ecumenicidade. Há cidades nas quais cristãos e pessoas de Candomblé ou Umbanda formam uma equipe de defesa da natureza, ou um centro de direitos humanos.
c) O diálogo dos intercâmbios teológicos
Nesta etapa ou dimensão do processo, as pessoas e comunidades procuram aprofundar a compreensão das suas respectivas heranças religiosas, e apreciar os valores espirituais uns dos outros. É a relação no plano da fé. Quando já se é amigo e já se confia uns nos outros, é possível aprofundar a relação no campo da fé. Nas diferentes Igrejas têm se desenvolvido comissões de diálogo que aprofundam pontos de dificuldade no campo da fé. Há acordos entre Igrejas cristãs sobre batismo, eucaristia, ministérios e outros assuntos. Uns ajudam os outros a viver a fé.
d) Chegamos aqui ao nível do diálogo na experiência religiosa e espiritual. Então, as pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas compartilham as suas riquezas espirituais, no que se refere à oração e à contemplação, à fé e aos caminhos da busca de Deus e do Absoluto. É o momento dos cultos em comum e da partilha no caminho espiritual. Evidentemente, não se tratam de passos um depois do outro. Às vezes, acontece que eles são concomitantes e outras vezes o terceiro vem na frente ou o quarto se coloca no lugar do primeiro. O importante é que percebamos o processo, a partir da vida e da amizade, do serviço em comum, da fé e aí sim da experiência espiritual.
Quem crê em Deus, sabe que se aventurar neste caminho espiritual é deixar-se conduzir pelo Espírito que “sopra onde quer, ouve-se a sua voz, mas não se sabe para onde vai nem de onde vem” (Jo 3,8). Como, no século IV, escreveu Agostinho: “Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Deem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer” (Sto. Agostinho)⁸.
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Recife, 13 de agosto de 2025
Marcelo Barros
1 – GUTIERREZ, Gustavo. Práxis de libertação. Teologia e anúncio. In: Concilium, vol. 96, número
“X”/6. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 737.
2 – BOFF, Leonardo. – O Caminhar da Igreja com os oprimidos, Vozes, 3a ed. 1988, pp. 31- 32.
3 – Cf, https://www.adorocinema.com/filmes/filme-265413/
4 – Cf. WOLFF, Elias. Caminhos do Ecumenismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 2002.
5 – COSTA, Rosemary Fernandes. Ecumenicidade como vivência: um caminho dialógico. In: Revista
CREatividade. PUC-Rio, 2024. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/68397/68397.PDF
6 – O Reino de Deus no centro.
7 – Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTERRELIGIOSO e a CONGREGAÇÃO PARA
A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS, Documento Diálogo e Anúncio. N. 42. Ver:
https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/documents/rc_pc_interelg_doc_190519
91_dialogue-and-proclamatio_po.html
8 – AGOSTINHO, Tratado sobre o Evangelho de João 26, 4. Cit. por Connaissance des Pères de l’Église32-
dez. 1988, capa.

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