A crise climática é um dos geradores da pobreza. - FOTO| CláudiaPereira - G20 RJ 2024.
Com o tema “Tu és a minha esperança”, 9ª JMP convida a Igreja a criar novos sinais de esperança para combater as raízes estruturais da desigualdade
Por Cláudia Pereira | Cepast-CNBB
A 9ª Jornada Mundial dos Pobres (JMP), que ocorre de 9 a 16 de novembro, não pede apenas caridade, mas um questionamento profundo sobre porque a esperança é negada a tantos. A mensagem do Papa Leão XIV ao Dia Mundial dos Pobres e em sua exortação apostólica, “Dilexi te”, alertam para a urgência em enfrentar as causas estruturais da pobreza e criar novos sinais de esperança, uma forma de viver concretamente o Evangelho.
Com o tema “Tu és a minha esperança” (cf. Sl 71,5), a Comissão Episcopal para Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Cepast-CNBB) mobiliza dioceses, paróquias, comunidades e movimentos em todo o país. A proposta, que no Brasil se consolidou como uma “jornada” (semana), busca ir além do assistencialismo, promovendo um debate sobre a necessidade de justiça estrutural para que a sociedade compreenda e combata as verdadeiras causas da pobreza.
Dados recentes indicam que 2,2 milhões de brasileiros saíram da insegurança alimentar considerada grave entre 2023 e 2024, e o Brasil saiu novamente do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego em agosto apontou uma queda para 5,8%.
Mas qual a relação destes dados com a Jornada Mundial dos Pobres? Embora os números indiquem uma melhora macroeconômica, eles não refletem a realidade de milhões que permanecem abaixo da linha da pobreza. Na cidade de São Paulo, a maior da América Latina, o primeiro semestre deste ano registrou mais de 400 mil famílias em situação de extrema pobreza. Paralelamente, os impactos da crise climática atingem de forma mais dura as populações vulneráveis. Como expressou o Papa Leão XIV em sua mensagem ao Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação: “Esvaziar a justiça e a paz significa atingir principalmente os mais pobres, os marginalizados, os excluídos”.
Milhares de brasileiros saíram do Mapa da Fome, porém a pobreza persiste. FOTO| CláudiaPereira – Distribuição de alimentos em RR – 2024
As causas estruturais que geram a pobreza
Para o sociólogo Eduardo Brasileiro, pesquisador na área de política e desenvolvimento social e articulador da Economia de Francisco e Clara, a JMP é um momento pedagógico oportuno para expor as violências financeiras, culturais e econômicas que estruturam a desigualdade. Analisando os últimos nove anos, desde quando foi instituída a data pelo Papa Francisco, o sociólogo destaca que a natureza desigual do capitalismo é um dos principais vetores, por favorecer a concentração de riqueza e gerar uma asfixia econômica que exclui os mais pobres.
Ele também conecta diretamente a pobreza à crise climática. Segundo o sociólogo, a destruição dos ecossistemas e as mudanças climáticas, impulsionadas pela produção excessiva e pelo desmatamento, agravam a vulnerabilidade e a privação de recursos básicos, como a água.
“O grito da terra é o grito dos pobres. Há um modelo de sociedade que não só exclui o ser humano, mas também subjuga os ecossistemas e os mais pobres aos seus interesses. A maior tarefa pedagógica da Jornada Mundial dos Pobres é desnudar o sistema de violências financeiras, culturais e econômicas causado pela sanha do lucro, da competição e da acumulação”, expressou Eduardo.
Por que a melhora não é sentida por todos?
Questionado sobre os indicadores positivos, como a saída do Mapa da Fome, que muitas vezes não refletem a economia real sentida pelas famílias, Eduardo Brasileiro atribui o descompasso à dificuldade de acesso a bens essenciais, como alimentação e moradia. Ele frisa que, apesar da globalização e da maior circulação de bens, a população não está necessariamente se beneficiando, isso reflete a dificuldade de acesso à qualidade de vida para os mais pobres.
“A sensação de termos mais poder aquisitivo é um engano. Quando não se democratiza a economia, os direitos falham. A saída do mapa da fome só foi possível por um exercício de democratização do acesso à alimentação”, ressalta o sociólogo.
Para reverter o quadro, ele defende um papel central do Estado na promoção da justiça econômica, com a implementação de políticas que democratizam o acesso a bens, aumentem os investimentos públicos e garantam os direitos sociais. Ele citou a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) como um exemplo de ferramenta estatal eficaz para ajudar a controlar os preços dos alimentos.
A crise climática como fator de empobrecimento
Eduardo Brasileiro afirmou que a crise climática atinge de forma mais severa as populações vulneráveis, tanto urbanas quanto rurais. Nas cidades, a vulnerabilidade se traduz na falta de infraestrutura básica.
“Muitas famílias não têm acesso a ventilação adequada, saneamento e refrigeração, tornando-se mais vulneráveis ao calor extremo”, disse. No campo, agricultores familiares sofrem com a escassez de água, resultando em perdas de safras.
O sociólogo também fez uma ressalva à transição energética, apontando que instalações de campos eólicos têm prejudicado comunidades rurais, que recebem pouco pela cessão de suas terras e ainda enfrentam a infertilidade do solo. Ele enfatiza que as mudanças climáticas, dessa forma, aprofundam as desigualdades sociais e econômicas, exigindo uma abordagem mais justa para o problema.
“Hoje, ter um ventilador ou uma casa com ventilação adequada não é uma questão de conforto, é um fator que expõe a violência sofrida pelos mais empobrecidos”, alerta Eduardo.
FOTO_Cláudia Pereira 4045.jpg _COMUNIDADE JD PAZ ZONA SUL DE SP 2020
Propostas para fortalecer a esperança
Para melhorar as condições socioeconômicas das famílias, Eduardo propõe foco na democratização da renda e na proteção ao trabalhador, incluindo a implementação da renda básica de cidadania — um suporte financeiro garantido a partir dos 18 anos para promover a autonomia.
Além disso, vê como urgente a revisão da reforma trabalhista de 2017 e a criação de mecanismos de proteção para trabalhadores autônomos, resgatando a dignidade do trabalho. O que ele propõe é consolidar um projeto popular que melhore a geração de renda e a qualidade de vida da população empobrecida.
Ao concluir, o sociólogo apontou a Economia de Francisco e Clara como um caminho concreto para construir uma economia justa. Ele afirma que fortalecer ações de economia solidária é fundamental para que os cristãos se conectem aos apelos do Papa Francisco e do Papa Leão XIV, aprendendo com movimentos populares que lutam por dignidade, moradia e trabalho.
“O desafio da Economia de Francisco e Clara é repensar a estrutura econômica. Não podemos naturalizar mercados de desigualdades, não podemos naturalizar bilionários enquanto temos milhares de empobrecidos. É um mundo adoecido por um projeto político”, finalizou.
Ações concretas de Esperança que superam o assistencialismo. Em Recife (PE) e Manaus (AM) os desafios estão no campo de missão
Sob o lema “Tu és a minha esperança”, a Comissão para a Ação Sociotransformadora da Arquidiocese de Olinda e Recife prepara ações para a Jornada Mundial dos Pobres (JMP) deste ano que buscam superar a lógica assistencialista. Colocando o objetivo na escuta de comunidades vulneráveis e na cobrança por direitos, a Comissão cria uma forma também de ser um sinal de esperança ainda mais concreta.
A articulação, no entanto, enfrenta obstáculos complexos. O objetivo é superar estes impedimentos. Vivian Santana, da articulação das Pastorais Sociais, que atua junto ao Padre Edson André, relata a dificuldade em dialogar com os governos municipais e estadual sobre as demandas da população. “Temos um município entre os cinco mais violentos do país”, afirma.
“Não é fácil viver em comunidade onde a violência nos amedronta. Não conseguimos desenvolver atividade em algumas comunidades no turno da noite, pois seria o horário que muitas vezes os jovens e adultos chegam do trabalho ou de algum bico”, conta Vivian.
Apesar do cenário adverso, que inclui também a falta de moradia, emprego e insegurança alimentar, os esforços não cessam. Como sinais de esperança, ela destaca o surgimento de parcerias para cursos profissionalizantes. Novos projetos de longo prazo estão sendo pensados para 2026, alinhados à Campanha da Fraternidade.
Apesar do cenário adverso, que inclui também a falta de moradia, desemprego e insegurança alimentar, os esforços não cessam. Na Arquidiocese do Recife, o compromisso se concretiza de três maneiras: Na promoção da cidadania e dos direitos humanos, como o exemplo do Fórum SUAPE no Quilombo de Mercês, que constrói diálogo com comunidades atingidas por violações sociais, buscando consciência e políticas públicas; a presença nas periferias e territórios de maior vulnerabilidade com os mutirões sociais no Pátio do Carmo e no Ibura e as ações das Pastorais Sociais que atuam o ano inteiro com distribuição regular de alimentos, orientações jurídicas e defesa da moradia e segurança alimentar.
Para a JMP deste ano, a estratégia é dar visibilidade às pautas das comunidades e cobrar soluções das autoridades. A Arquidiocese do Recife prepara uma programação que une espiritualidade, missão e cuidado social, abrangendo os povos da cidade, do campo e das águas.
Para a JMP deste ano, a estratégia é dar visibilidade às pautas das comunidades e cobrar soluções das autoridades. A programação será descentralizada, abrangendo os povos da cidade, do campo e das águas, com destaque para:
10/11 – Visita ao Presídio Feminino Bom Pastor com objetivo de realizar momentos de escuta e diálogo, buscando compreender os anseios de mulheres encarceradas, que muitas vezes são esquecidas pela própria família.
11/11 – Visita a Comunidade Quilombola, que fica no Cabo de Santo Agostinho: A Comissão irá vivenciar o dia a dia de homens e mulheres que vivem da pesca artesanal, levantando os desafios enfrentados por eles, que convivem com os impactos do Porto de Suape.
14 e 15/11 -Dia de Cidadania: Serão realizadas duas grandes ações, uma voltada à população em situação de rua no centro do Recife e outra para famílias em extrema pobreza na cidade de Jaboatão dos Guararapes.
16/11 – Encerramento: A jornada se encerra com o Jubileu das Pastorais Sociais, incluindo café da manhã, caminhada e celebração na Catedral da Sé, em Olinda.
Atividades durante a Jornada Mundial dos Pobres em Recife em 2024. Foto: Acervo da Arquidiocese.
Em Manaus o apoio é permanente e humanizado
Com um compromisso que ultrapassa o calendário, a Arquidiocese de Manaus (AM), mantém uma estrutura permanente de apoio à população empobrecida, intensificada durante a JMP.
Uma das principais frentes é o Centro de Acolhida Dom Sérgio Castriani, da Pastoral do Povo de Rua, que oferece escuta, alimentação e cuidados. Além da assistência, rodas de conversa e um trabalho especial de reaproximação com familiares são realizados. Este trabalho é complementado por uma rede de solidariedade que inclui a Cáritas, a Aliança de Misericórdia, o projeto “Olha a sopa” e os religiosos Vicentinos.
Para Maria Guadalupe de Souza Pires, articuladora das pastorais sociais, a estratégia deste ano, marcada pelo Ano Jubilar da Igreja, não será um grande evento, mas sim um momento para impulsionar as ações diárias. Irmã Rosana Marquette, coordenadora de Pastoral, reforça que o Jubileu da Esperança é um convite à fé e à assistência material e espiritual o ano todo.
A Arquidiocese de Manaus celebrará a 9ª Jornada Mundial dos Pobres de 09 a 30 de novembro. A programação inclui uma caminhada que sairá da Igreja dos Remédios em direção à Catedral Metropolitana de Manaus (30/11). Ao chegarem à catedral, os fiéis realizarão a passagem pela Porta Santa. Em seguida, será celebrada uma missa e será distribuído um café da manhã aos participantes.
A esperança diante da barbárie
Antes de fechar este texto, gostaria de partilhar com os leitores um sentimento de indignação e frustração.
Na tarde do dia 28 de outubro, ao finalizar as entrevistas para esta matéria, o noticiário destacava a barbárie na cidade do Rio de Janeiro: dezenas de pessoas mortas, entre elas certamente muitos inocentes e a cidade sitiada durante uma operação desastrosa nos Complexos do Alemão e da Penha, ação considerada uma das mais letais da história do Rio.
Esta violência, que repercutiu na imprensa internacional e remete à realidade de guerras como a de Gaza, é também um dos fatores estruturais da pobreza.
No momento em que escrevemos sobre o Esperançar e os caminhos possíveis para a dignidade das pessoas, na tentativa de fazer refletir sobre as estruturas que geram a pobreza e a violência; no momento em que o Papa Leão XIV divulga sua exortação, reforçando o chamado para que se viva a profecia da denúncia e o anúncio por amor aos pobres, nos esbarramos com cenas de atrocidades e violência do próprio Estado.
Quem sofre mais e quais foram as vítimas deste novo massacre no Rio de Janeiro? Os pobres, os mais empobrecidos.
Diante disto, reforço o apelo desta 9ª Jornada Mundial dos Pobres: é preciso desnudar o que gera a pobreza. Entre as mensagens do pontífice, destaco sua afirmação de que a pobreza tem causas estruturais que precisam ser enfrentadas e eliminadas, e que ajudar os mais pobres é um ato de justiça, antes mesmo de ser caridade. Portanto, penso que um ato de coragem é denunciar todas as formas de violência.
Que sejamos firmes em defesa da VIDA, sempre!
Existe esperança. “Tu és a minha esperança”. – FOTO| Cláudia Pereira – G20 RJ 2024.