A Aliança Internacional dos Povos, foi um dos encaminhamentos importantes nesta COP- Foto: ©CláudiaPereira
A Conferência do Clima em Belém expôs a dialética entre os interesses corporativos, mas a mobilização popular assumiu o protagonismo e reafirmou a luta por dignidade e por um planeta habitável

 

Por Cláudia Pereira | Cepast-CNBB

 

A COP30 aconteceu “em nossa casa”, na Amazônia brasileira, e, mesmo após seu encerramento, o grito da floresta continua a ecoar, reverberando junto à urgência das consequências do aquecimento de 1,5ºC. Em Belém do Pará, a 30ª Conferência das Partes sobre Mudança do Clima se tornou um espaço global para líderes políticos e econômicos, mas foi a voz popular, da sociedade civil organizada o verdadeiro protagonismo.
Entre a visibilidade midiática e as discussões oficiais, o marco desta edição não se deu nos espaços físicos da convenção, mas sim na robusta presença e mobilização dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, camponesas, pescadoras, pequenas agricultoras, povos da cidade e do campo. Eles trouxeram suas realidades, estabelecendo um contraste contundente com as chamadas “falsas soluções” apresentadas.

 

Belém, sinônimo de acolhimento e resistência Amazônica. Foto: @CláudiaPereira

Belém, sinônimo de acolhimento e resistência Amazônica

Belém, sinônimo de acolhimento e resistência amazônica, soube receber a todos e a todas com sua diversidade cultural, gastronomia singular e a alegria de seu povo. A irresistível combinação de uma cuia de açaí com peixe frito ou um delicioso tacacá reforça a identidade deste lugar, um convite irrecusável.
Contudo, o espírito da COP 30 foi muito além da hospitalidade, é claro. A mobilização popular, articulada por movimentos sociais, organismos e, especialmente pelas pastorais sociais da Igreja, reafirmou seu papel profético na luta por justiça socioambiental, ancorada nas demandas concretas dos povos do campo, da cidade, das florestas e das águas.
Em conjunto, pastorais, organismos e movimentos sociais apresentaram críticas contundentes às soluções baseadas em mecanismos de mercado. O alerta central é claro: a floresta, a água, a terra e os minérios não podem ser tratados como mera mercadoria. A crise climática exige uma mudança estrutural que respeite os limites ecossistêmicos do planeta.
A cidade de Belém, se preparou estruturalmente para sediar a COP30, organizando espaços como a Zona Verde, dedicada à sociedade civil, e a Zona Azul, reservada às negociações formais. No entanto, o espaço com maior incidência se revelou no que a imprensa denominou de atividades “paralelas”. Pode-se afirmar que a maior participação foi na Cúpula dos Povos, Aldeia dos Povos, Tapiri, Casa da COP e outros.
A Zona Verde, por exemplo, revelou contradições entre o discurso e a realidade da inclusão dos povos mais afetados pela crise climática, principalmente povos e comunidades tradicionais. Um episódio expôs o cerne da contradição: os povos Munduruku foram inicialmente barrados na entrada da Zona Verde, da qual participavam de uma atividade agendada.
O cacique Manuel Munduruku resumiu o sentimento de exclusão ao afirmar que a COP “não foi pensada para os povos indígenas”. Esta percepção reflete uma crítica mais ampla: a estrutura da Zona Verde estava mais revestida de interesses comerciais e do chamado “capitalismo verde” do que de um verdadeiro diálogo com os povos das florestas e das águas.
Apesar dos obstáculos e da sensação de exclusão nos espaços oficiais, a sociedade civil respondeu com intensa mobilização. Iniciativas como a Cúpula dos Povos, Casa COP do Povo, Tapiri e a Aldeia dos Povos estavam em suas próprias plenárias fazendo seus debates e articulações.

 

“Nós sabemos trabalhar, cultivar, nós sabemos preservar e sabemos reflorestar. O governo nos nega direitos e abre espaço para quem destrói”
COP 30 com tudo ainda assim foi vitória para povos e comunidades tradicionais da Amazônia. Foto: ©CláudiaPereira

 

A voz da floresta

Para entender a profundidade da participação popular e ouvir melhor o grito da floresta, basta um dedo de prosa com quem vive nela. Maria Deusa Conceição Caldas, quilombola da comunidade remanescente de Tambaí Açu, no município de Mocajuba (PA), é um símbolo da resistência das mulheres deste chão sagrado. Sua comunidade, que leva o nome do rio que cerca o território, vive da agroecologia e da produção de açaí e farinha de mandioca.
No entanto, a vida no quilombo está sob ataque. Enquanto Maria Deusa participava da COP30 para fortalecer a luta de seu povo, recebeu a notícia de mais um ataque criminoso de incêndio. “O meu quilombo tá pedindo socorro”, desabafou. A comunidade, praticamente ilhada pelo agronegócio, enfrenta a morosidade do Estado para regularizar o território. “Nós sabemos trabalhar, cultivar, nós sabemos preservar e sabemos reflorestar. O governo nos nega direitos e abre espaço para quem destrói”, denuncia Deusa.
A COP 30 serviu, ainda, de espaço oportuno para denunciar a violência e as ameaças sofridas por lideranças comunitárias. Em um ato simbólico de profundo significado, o Tribunal Popular julgou mais de 20 casos de ameaças, violações e violência física sofridas por defensores da natureza. O Tribunal mirou a atuação de projetos de mineração e infraestrutura, a expansão do agronegócio, o desmatamento e o assédio de empresas de crédito de carbono, todos com apoio, ou omissão, do Estado brasileiro.
Irmã Jane Dwyer, agente da CPT em Anapu (PA) e companheira de congregação de Dorothy Stang, expressou que o ato se converte em um tribunal permanente: “Temos que reconhecer que não estamos sós. Agora sabemos que não é só no Brasil, é em todo o mundo. A verdadeira mudança vem de baixo, de quem vive junto a essa realidade.”
Embora a participação dos povos da Amazônia não tenha sido ideal nas mesas de negociação, uma delegação de aproximadamente 900 representantes na Zona Azul estava presente, confrontando mais de 1.500 lobistas corporativos. Somente essa desproporção evidencia quais interesses estão em jogo no mundo atualmente. Os povos indígenas manifestaram suas demandas e fizeram-se ouvir, mesmo que suas contribuições não tenham sido oficialmente reconhecidas na pauta final. Diferentemente de outras COPs, os povos obtiveram visibilidade e puderam protestar legitimamente, com apoio do governo brasileiro, o que é notável se considerarmos as realidades de outros encontros da cop no passado, como o próximo a ser sediado pela Turquia, onde restrições à liberdade de expressão é uma realidade.

 

“O impasse da COP chama-se economia capitalista extrativista. É ela que está dominando os estados, a força das grandes corporações internacionais, que querem, de um lado, aproveitar até a última gota do petróleo e, no caso do agronegócio, até a última gota de água.
Tribunal dos Povos, espaço oportuno para denunciar as violência e as ameaças sofridas pelos povos do campo, das florestas, das águas e das cidades. Foto: Cláudia Pereira

O Impasse e o chamado à mudança estrutural

Ao ser questionado sobre as ações necessárias após a COP 30, o padre Dário Bossi, assessor da Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração (CEEM-CNBB), foi incisivo: a resposta está nos povos. “A história se constrói a partir dos pequenos. O Papa Francisco destaca que os excluídos têm poder de mudança, defendendo direitos básicos. Suas organizações e ações podem transformar o futuro da humanidade em uma história nova e transformadora”, enfatizou Padre Dário.
O documento final da COP 30 gerou um balanço controverso, considerado descolado da realidade da crise. Padre Dário, assim como ambientalistas e os próprios povos, viu o encerramento da COP 30 com frustração. O documento falhou em abordar as três expectativas centrais em relação ao clima: a transição dos combustíveis fósseis, a redução do desmatamento e o aumento de financiamentos. Isso é um reflexo da ineficácia das negociações da ONU e de suas limitações em estabelecer responsabilização. Apesar das contradições internas, a realização da COP 30 foi uma vitória tática para povos e comunidades tradicionais da Amazônia, especialmente pelas demarcações de territórios indígenas.
“O impasse da COP chama-se economia capitalista extrativista. É ela que está dominando os estados, a força das grandes corporações internacionais, que querem, de um lado, aproveitar até a última gota do petróleo e, no caso do agronegócio, até a última gota de água. O negacionismo é, na verdade, uma maneira para disfarçar as alianças de poder entre a política, os estados e esses lobbies corporativos”, pontua padre Dário.
Contudo, Padre Dário destaca que, na agenda oficial da COP 30, os povos indígenas da Pan-Amazônia apresentaram suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), que, embora não tenham sido incluídas na pauta oficial, destacam suas reivindicações e prioridades. A Aliança Internacional dos Povos, durante a Cúpula dos Povos, foi também um passo importante, que fez a interconexão entre justiça climática, ambiental, econômica e social. No Brasil, a Igreja é vista como uma aliada importante nessa luta.
Um outro ponto que Padre Dário destaca desta COP, e que também é resultado da mobilização popular, é um fato histórico: o reconhecimento de 20 territórios indígenas e 28 terras quilombolas em diversos estados. Uma área maior que o estado da Paraíba foi assegurada, mostrando que a denúncia e a visibilidade dos povos tiveram sucesso. 
O ápice dessa mobilização foi a Marcha Mundial pelo Clima (15/11), que reuniu mais de 70 mil pessoas que se manifestaram por justiça climática e inclusão nas mesas de negociação. A marcha destacou a importância de reverberar o grito da floresta e dos povos mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas. A manifestação contou com a presença de autoridades, incluindo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, reconhecendo a força do movimento popular.
A credibilidade internacional do Brasil como líder climático foi posta em xeque pela contradição ética de sediar a COP enquanto o Congresso avançava com o “PL da Devastação” e a Petrobras buscava explorar petróleo na Foz do Amazonas. Padre Dário reconhece o esforço do Executivo, que manteve a liderança externa, mas ressalta a urgência da coerência interna.
O grito da floresta nas ruas de Belém. Foto: ©CláudiaPereira

 

A voz do Sul Global e o chamado profético

O Documento das Igrejas do Sul Global sobre Justiça Climática e Cuidado da Casa Comum surgiu como uma construção progressiva da Igreja Católica do Brasil, ampliada com contribuições da América Latina, Ásia e África. Ele recolhe os desafios, dramas e propostas do Sul Global, afirmando-o como um contexto geopolítico que vive os impactos e propõe soluções de modo diferente do Norte. O documento foi considerado profético, e sua importância foi endossada pelo Papa Leão.
Questionado sobre como a Igreja contribui nas reflexões pós-COP, tendo a encíclica Laudato Si’ como base, Bossi lembrou mais uma vez do Papa Francisco.
“A base de reflexão e compromisso é a encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, que convoca uma revolução cultural e uma mudança radical de modelo, rejeitando diretrizes meramente reformistas. A Igreja deve atuar profeticamente para além das políticas possíveis da COP, defendendo a proteção dos biomas e culturas, promovendo a justiça econômica, incluindo a taxação dos super-ricos e a sobriedade no consumo”, disse ele que continuou.
“A mobilização da sociedade civil e da Igreja deve focar agora na vigilância contra a mineração predatória, o avanço do agronegócio e o ‘PL da devastação.’ O objetivo final é construir um mundo justo, democrático, com bem viver para todos e todas. Somos a unidade na diversidade. O avanço da extrema direita, do fascismo e das guerras ao redor do mundo exacerba a crise climática e a exploração da natureza e dos povos, tornando o protagonismo dos pequenos o caminho para uma história realmente nova e transformadora”, reforçou padre Dário.
Povos e comunidades tradicionais alertam que a crise climática não pode ser ignorada. Daniel Yudja Juruna, do estado de Mato Grosso, foi direto: “O agrossistema, que destrói florestas, não irá salvar a humanidade; se não houver mudança, todos sofrerão as consequências, como falta de água e eventos climáticos extremos”.
“A natureza tem direitos. A natureza, a nossa vida, somos a floresta… se a gente não aprender isso, não entendemos o que é a vida, não entendemos nada sobre aquilo e a razão de nosso ser”, diz a voz sábia e resistente da Irmã Jane Dwyer.
A COP 30 em Belém, portanto, ficou marcada pela dialética entre a oficialidade e a insurgência. Enquanto a estrutura do evento flertava com interesses econômicos e impunha barreiras, a articulação da sociedade civil e dos povos e comunidades tradicionais garantiu que a verdadeira pauta da Amazônia, a luta por dignidade e por um planeta habitável e que ecoasse pelas ruas da capital paraense e todo o mundo.

 

Os povos de todo o mundo disseram:a floresta, a água, a terra e os minérios não podem ser tratados como mera mercadoria. Foto: @CláudiaPereira