Favela do Moinho no centro da capital paulista. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
A crise habitacional que enfrentamos atualmente é causada por diferentes fatores. Uma situação que produz espantosos sofrimentos dos pobres, nas cidades do Brasil. Como é possível que milhares de pessoas de diferentes idades, tenham que viver ao relento, buscando espaços nas praças, becos e calçadas para descansar ou se defender da chuva? Por que neste país geograficamente gigante não tem espaço suficiente para que seus habitantes possam morar como seres humanos?  Sabemos que o desemprego, as drogas e as políticas habitacionais insuficientes são algumas das causas desta dolorosa situação dos pobres. 
Questionamos esta realidade, mas sabemos que a concentração das riquezas, sobretudo da terra, é uma contradição histórica no Brasil, desde o tempo das capitanias hereditárias, para povoar a colônia e dividir a responsabilidade da colonização. Então, desde o tempo do Brasil colônia até os nossos dias, os privilégios dos ricos permanecem e os direitos dos pobres não são reconhecidos. Estima-se que 80% dos imóveis no Brasil estão concentrados nas mãos de apenas 20% da população. Este dado evidencia a desigualdade social do nosso país. Além disso, uma infraestrutura básica de controle habitacional contribui para a perpetuação do privilégio de que ricos e políticos habitem nos melhores bairros das nossas cidades. 
Esta continuada situação de privilégios dos poderosos nos lembra a profecia de Amós, que denunciava as regalias dos poderosos de Judá: “Eles esmagam o fraco, cobrando deles o imposto do trigo. Poderão construir casas com pedras lavradas, mas nelas jamais irão morar” (Amós 5,10-12). E Isaías profetiza: “Ai daqueles que ajuntam casa a casa e aproximam campo a campo, até que não haja mais lugar e habitem sozinhos no país” (Is 5,8). E a situação do povo bíblico mudou muito com as invasões de outros povos, como assírios, babilônios e gregos. Mas continuou o sonho de viverem juntos, em afetiva moradia. Um sonho que continua presente e dá sentido à luta cotidiana pela vida. 
Cada ano, a CNBB organiza a Campanha da Fraternidade (CF) com um tema relacionado com a justiça social. Através das CF de cada ano, somos despertados para ver, refletir e agir sobre situações de desigualdades sociais. Desta maneira, as comunidades cristãs, paróquias e dioceses vão realizando campanhas solidárias e tecendo relações de esperança solidária.  Cada ano a CF traz um tema social para animar nossa solidariedade cristã. Assim, fomos cuidando para que que em todos os bairros das cidades do nosso país haja água potável, saneamento básico, acesso à educação, com transporte público de qualidade. 
Neste ano de 2026, a CF se dedica ao tema da MORADIA. Sabemos que o tema da moradia não pode ser reduzido aos aspectos físicos e sociais. No entanto, ter moradia digna e segura é sonho do povo e direito humano. Por isso, nos perguntamos o que significa moradia? Ela é um espaço importante também de afetividade, onde as relações humanas de solidariedade e respeito acontecem sem planejamento. Parece-me necessário esclarecer, também, que estes sentidos da moradia não se limitam ao seu tamanho ou endereço. A moradia é um espaço de cuidado e de prazer, onde os fatos acontecem e vão gerando em seus habitantes as mudanças necessárias de bem querer e compromisso, que sustentam e dão sentido à luta cotidiana pela vida. Por outro lado, a apreensão em ser retirado de sua moradia, por não ter como pagar o aluguel, por estar em uma ocupação ou em área de risco é sempre uma violência aos sentimentos e raízes das pessoas.
Na moradia, é necessário construir e manter relações espontâneas de troca afetiva.  Entre as pessoas que vivem na mesma moradia. Uma delas é o respeito e a atenção que suaviza a peleja pela sobrevivência e mostra que o trabalho não é apenas um peso. Mesmo quando nos sentimos cansadas/os, ainda atendemos necessidades de crianças ou de pessoas idosas e enfermas. Mas não o fazemos como uma obrigação. As pessoas que habitam na mesma moradia possuem e tecem laços humanos muito importantes. O afeto presente na moradia faz com que as situações humanas limitadas deixam de ser um peso, porque são amadas. A convivência participativa é exigente, mas gera identificação. Então, o peso da responsabilidade vai se transformando em afeto, na medida em que sentimos a outra pessoa como parte da nossa vida. 
Cuidar de uma pessoa enferma, habitando na mesma moradia, é uma expressão de carinho e não um trabalho profissional. O cuidado espontâneo dedicado às pessoas, às plantas ou aos animais gera uma onda de ternura, que vai se derramando por toda a moradia. O cuidado espontâneo e gratuito gera e comunica afetividade. Mais importante que palavras, a gratuidade cuidadosa faz despontar e comunicar um sentimento de esperança e sintonia. Cuidar de pessoas é sempre expressão de afeto. 
Pode até acontecer que a pessoa que esteja realizando o cuidado o faça como uma expressão da sua responsabilidade como mãe, pai ou irmã, etc… No entanto, sua ação de cuidado comunica e produz afeto, envolvendo outras pessoas no ambiente afetivo. Assim, a vizinha vem oferecer uma sopa quentinha. Um amigo oferece o carro para conduzir uma pessoa enferma ao centro médico para seus exames, etc. Estas ações espontâneas de cuidado solidário revelam uma relação de pertença que amplia o sentido de participação. É uma forma de dizer: “vocês são importantes para nós!”
Nestas circunstâncias de trocas, as pessoas da mesma moradia e amigos e vizinhas vão crescendo como seres humanos. Na medida em que se abrem às relações de dar e receber cuidados, as pessoas vão se humanizando e descobrindo o sentido da vida. O crescimento das afetividades mútuas é um aspecto muito importante neste tempo em que vivemos. Em vez da indiferença e da pressa que fazem parte do ritmo da vida nas cidades, descobrimos que nossa fé em Jesus Cristo nos ajuda a ser uma presença significativa dentro da própria moradia. E a partir das próprias experiências, assumir uma postura gratuita de solidariedade em casa, no trabalho, na comunidade. 
Como escolhemos a fé em Jesus Cristo como caminho, encontramos uma força que pode nos ajudar a crescer neste afeto humanizante. É a liberdade! Jesus Cristo amou sem medida e se entregou até o fim. Como pessoas de fé, vamos pedir ao Espírito Santo a graça de crescer na liberdade. Na alegria da liberdade, podemos incentivar outras pessoas a contribuir para que a vida seja cuidada e não somente preservada. A liberdade é um dom, uma graça. Ela pode nos ajudar a acolher pessoas diferentes de nós, para que possam contribuir e conviver conosco, nesta alegre e agradável moradia.  
Na liberdade, sem sermos invasivas, buscamos celebrar os aniversários e expressar o bem-querer sem medo. Através de trocas afetivas, pouco a pouco, a moradia conquistada com tanta luta passa a ter história própria, porque vai dando sentindo e construindo histórias que, nas conversas, vão sendo partilhadas com tons e expressões diferentes de heroísmo e brincadeira. 
A entrega cotidiana alegre e gratuita leva ao amadurecendo pessoal, que possibilita novas e enriquecedoras relações. A diversidade de visões, que nascem de diferentes experiências, tradições culturais e religiosas podem provocar tensões.  A correria do dia a dia produz tensões, desconfiança, medos, confrontos que geram crises e levantam suspeitas. Mas as partilhas espontâneas, convivendo na mesma moradia, cuidando não somente do espaço físico, vão assumindo a luta da vida com bom humor, relativizando fofocas, superando e integrando limites pessoais e crescendo na fé. A espiritualidade cristã é pé no chão. Cair e levantar faz parte da caminhada de fé libertadora e comprometida, carregada de afeto, iluminada pela liberdade do Espírito.  
Assumindo a luta pelo direito à moradia vamos crescendo. O crescimento pessoal é um processo que se realiza nas relações. Podemos organizar um grupo que lute pelo direito de todos à moradia. Neste processo, acolher questionamentos pode significar uma graça, uma oportunidade para descobrir caminhos significativos e realizar o sonho de Deus. Com os olhos atentos e o coração aberto, jovens e adultos vão escutando um chamado para curar as feridas da humanidade. Sentem desejo de ser presença gratuita, amorosa e criativa, junto às pessoas fragilizadas. Uma vocação que supõe contínuo discernimento. Vamos contar com estes/estas jovens em nossos grupos. 
Apresento algumas sugestões de textos bíblicos para que possamos ler e descobrir novos sentidos da moradia, ligando o texto com a vida. Começo lembrando que a palavra “moradia” está muito presente na Bíblia. No Novo Testamento, temos duas palavras em grego que significam moradia: oikos, que aparece 114 vezes, e oikia que é citada 94 vezes. Estas duas palavras gregas (oikos e oikia) têm o sentido de casa, isto é, de moradia. 
Gosto muito de uma narrativa do Evangelho de João 1,35-39 sobre as relações na moradia. Dois discípulos de João Batista ouviram Jesus falar e o seguiram. Jesus vendo que eles o seguiam, lhes disse: “O que vocês estão procurando?”. Eles responderam: “Mestre, onde moras?” Jesus disse: “Venham e vejam”. Então eles foram e permaneceram… Nesta narrativa de João não aparece as palavras gregas oikos nem oikia. Mas apresenta de maneira muito bonita e até poética o sentido de moradia como convivência afetiva. O texto pode ser entendido melhor se partimos de nossos encontros. Nossas oportunidades de aproximação e escuta na moradia, com Jesus…
As primeiras comunidades cristãs aprofundaram a experiência de discípulos e discípulas que caminharam diariamente com Jesus. Eram homens e mulheres. Entre eles, estava Maria Madalena e outras mulheres. Ela acompanhou Jesus durante os seus três anos de vida pública. Foi uma amiga e discípula que esteve presente na crucifixão de Jesus (Jo 19,25) e que permaneceu diante do túmulo na noite da sua morte. Na madrugada seguinte, ela fez a maravilhosa experiência de ver Jesus Ressuscitado e afirmar aos companheiros com toda convicção: “Vi o Senhor”! 
Foram os discípulos e discípulas que transmitiram a memória fiel de Jesus de Nazaré. Nas pequenas comunidades, nas casas e povoados elas e eles fizeram circular o amor sem medida de Jesus. Sabemos, por experiência, que o amor pleno e sem medo, exerce o poder de defender e cuidar da vida…
BIBLIOGRAFIA
1 – Novo Testamento interlinear Grego – Português, Sociedade Bíblica do Brasil, 2ª edição, Impresso na Gráfica da Bíblia – Brasil, 2004.
2 – A Bíblia de Jerusalém, Nova Edição Revista, São Paulo: Paulus, 1985.
3 – Reconstruir relações num mundo ferido. Uma leitura de Marcos em perspectiva de relações novas, Equipe de Reflexão Bíblica, CRB, 2006.
4 – Eu faço a cidade e não moro nela. Reflexões bíblicas sobre moradia, Ildo Bohn Gass, Nelson Kilpp, Carlos A. Dreher, Carlos Mesters, Lauri J. Wollmann/Cito J. Rosenbach, São Leopoldo: CEBI, Série: A Palavra na Vida Nº 63 – 1993, 2ª Edição.

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