“Se é um corpo vivo, humano, é vulnerável ao vírus do HIV” | Crédito: Créditos da foto: Arquivo/Agência Brasil
Que o Dia Mundial de Luta contra a Aids seja livre das amarras do moralismo
 
Falar sobre HIV e Aids é, antes de tudo, falar de pessoas. Pessoas com histórias, afetos, trabalhos, famílias, medos, conquistas e sonhos. Pessoas que amam e são amadas. Por isso, no Dia Mundial de Luta contra a Aids, não basta repetir dados: é preciso lembrar que cada número representa alguém que merece dignidade, saúde e direitos humanos plenos, parece óbvio, mas não é.
Humanizar o debate é essencial. Na prevenção, falamos de pessoas. No diagnóstico, falamos de pessoas. No tratamento, falamos de pessoas. E, quando tratamos de mortes por Aids, falamos de mães, pais, filhos(as), amigos(as), amores, ausências que deixaram saudades e expectativas interrompidas. Não são estatísticas isoladas; são histórias interrompidas que devem nos mover à responsabilidade coletiva.
Como pesquisador em comunicação e HIV, pude observar que o jornalismo brasileiro ainda reproduz enquadramentos que associam o HIV à tragédia, à culpa e à morte. Essa representação tem impacto direto na vida de quem vive com HIV: afeta autoestima, acesso à saúde, vínculos sociais e o exercício dos direitos humanos mais básicos. E a comunicação é, também, um direito humano: quem vive com HIV precisa ser ouvido, reconhecido e retratado com humanidade pela mídia e pelo Estado.
Os dados globais ajudam a dimensionar a urgência, mas só ganham sentido quando lembramos que estes dados são pessoas. Em 2024, o mundo convivia com 40,8 milhões de pessoas vivendo com HIV, vidas reais, diversas em culturas, condições de vida, oportunidades de acesso ao tratamento e até mesmo às necessidades mais básicas.
Essa diversidade também revela desigualdades profundas: embora todas enfrentem desafios que poderiam ser evitados, não os sentem da mesma forma. Em questões sociais, nunca estamos todos no mesmo barco; há quem navegue com segurança, há quem enfrente a maré em cascos frágeis e há, ainda, quem sequer tenha um barco para começar a travessia.
Desde o início da epidemia, segundo a Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), 91,4 milhões de pessoas já foram infectadas pelo HIV e 44,1 milhões perderam a vida, números que revelam um impacto multigeracional profundo e que seguem ecoando nas memórias e trajetórias de quem ficou. Em 2024, uma pessoa morria a cada minuto por causas relacionadas ao HIV no mundo, um lembrete doloroso de que a epidemia continua onde falham o cuidado, a comunicação, a prevenção e as políticas públicas.
Cada número apresentado é uma vida que pulsa, que tenta, que insiste, ou que deixou de pulsar por falta de rede de apoio, diagnóstico tardio, desigualdades e violências estruturais e ausência de políticas justas e promoção dos direitos humanos.
Debate enfrenta moralismo e estigmas
Nunca tivemos tanta tecnologia, tanto conhecimento, tantos insumos eficazes e mesmo assim seguimos falhando. Porém, estas informações não estão chegando na ponta, na população. Este debate enfrenta o moralismo, o distanciamento e resquícios de memória de um passado muito mal construído, inclusive, em boa parte pela comunicação, já se passaram 40 anos e ainda não superamos estigmas, estereótipos e dores do passado.
Ao falar de HIV e Aids, o senso comum ainda desconhece o básico: o que são Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e Profilaxia Pós-Exposição (PEP), o que significa indetectável = intransmissível (I = I), o que é um casal sorodiferente e, muitas vezes, sequer compreende a diferença entre HIV e Aids. Essa lacuna não é acidental. Ela nasce de um desinteresse, do enfraquecimento da educação sexual, que não garante informação adequada em cada faixa etária, e da comunicação, que historicamente preferiu transformar o HIV em tema de polêmica, tragédia e sensacionalismo, ignorando seu potencial de notícia quando o foco é promover vida, cuidado e informação precisa.
“Se queremos uma sociedade realmente acolhedora, precisamos reconhecer que o HIV não é um problema de alguns. É um desafio de todos e todas nós. E só será superado quando cada vida for tratada com a dignidade que merece”.
Esse debate não pode ficar restrito às conferências de saúde. Ele precisa estar na conversa de almoço em família, no bar com amigos e amigas, nas pautas das redações, nas ementas das universidades, nos púlpitos das igrejas, nas formações de empresas, instituições públicas e organizações do terceiro setor.
Superar o estigma exige reconhecer as falhas, pessoais e coletivas, na forma como tratamos o tema e, a partir disso, ressignificar o olhar, aproximar-se com afeto das existências e enxergar no outro e na outra a mesma humanidade que carregamos. O Brasil dispõe de tratamento eficaz e gratuito; o que nos falta é conhecimento, coragem e sensibilidade para vencer o preconceito que ainda afasta tantas pessoas das oportunidades de viver plenamente.
Que o Dia Mundial de Luta contra a Aids de 2025 e todo o Dezembro Vermelho marquem o início de um novo momento: livre das amarras do moralismo, em que nenhuma pessoa seja reduzida a um número ou à sua sorologia. Pessoas que vivem com HIV ou Aids são, antes de tudo, “pessoas”, profissionais competentes, familiares presentes, amigos e amigas leais, sujeitos de direito, carregadores de sonhos e de luz. Que ninguém fique para trás, que o sigilo de cada pessoa seja respeitado e que todas possam viver com saúde, liberdade e direitos plenamente garantidos.
O amor cura!
*Henrique Cavalheiro é comunicador organizacional e mestre no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB). Ele também integra a comunicação do Conselho Pastoral de Pescadores e Pescadoras (CPP).

 

**Este artigo de opinião foi publicado originalmente no site do jornal Brasil de Fato DF.

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