Recentemente saíram os dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o censo realizado em 2022, no que diz respeito ao “rosto” religioso brasileiro. Coisas interessantes apareceram, mas não apareceu tudo o que nos deve interessar. Para muitos está em jogo quem cresce mais, quem diminui ou perde força, quem se mantém. O censo mostra o crescimento ainda permanente dos evangélicos, no entanto com uma diminuição de ritmo em relação à década precedente. Também mostra que o número de católicos continua caindo. Surpreende, porém, ver que as religiões de matriz afro tiveram um crescimento, o que significa que também essa proposta religiosa está encontrando espaço para florescer no atual cenário. Aparentemente e felizmente, a sociedade brasileira está mais plural.
No entanto, em relação à fé cristã, existe algo que não aparece no censo, pois diz respeito ao interno das comunidades religiosas. Me refiro a que tipo de crescimento temos nos cristianismos brasileiros. Que o rosto do cristianismo brasileiro está mudando, isso não é novidade. O movimento pentecostal cresceu e continuará crescendo, talvez não em um ritmo tão acelerado, mas ainda contínuo. O pentecostalismo encontrou largo espaço também na Igreja Católica, com a Renovação Carismática Católica, as novas comunidades e outros movimentos e mesmo institutos de vida consagrada. E como isso aconteceu? Simples, a Igreja Católica viu no processo de pentecostalização uma arma para frear a evasão de fiéis. Em certa medida funcionou, mas não podemos ser ingênuos de pensar que isso não tem um preço.
O que se percebe a olho nu, é que o crescimento do pentecostalismo no Brasil está de mãos dadas com o aumento do fundamentalismo religioso e repito, isso também dentro da Igreja Católica. Ser fundamentalista nunca foi um “privilégio” dos evangélicos. Aliás, até o Concílio Vaticano II a Igreja Católica mantinha uma postura fundamentalista e que beirava ao fanatismo em muitos pontos ligados à formulação e expressão de sua doutrina. Foi o Concílio que exigiu que a Igreja dialogasse com o mundo, fazendo-a abandonar sua postura sectária. A pentecostalização da Igreja Católica trouxe de volta o que antes já parecia superado pela comunidade católica: o sectarismo.
Bento XVI tinha a ideia de um pequeno rebanho que seria de fato “fiel”, ou seja, um grupo menor dentro dos moldes aos quais estamos acostumados, mas que cumpra todas as virgulas da lei católica. Temos já dentro do atual cenário católico brasileiro grupos assim, em que todos devem viver todos os preceitos da doutrina católica sem exceções. Isso concede aos líderes desses grupos controle sobre os fiéis que ali se encontram. Um funcionamento muito parecido com o de muitas igrejas evangélicas mais tradicionais. No entanto, isso seria algo irrelevante para os demais caso não fosse também parte de um projeto de poder.
Esses movimentos fundamentalistas católicos ou evangélicos tem projetos de poder: ir formando bancadas dentro do legislativo; assumir cargos no executivo; comandar a interpretação da lei a partir de dentro do judiciário. Tudo isso se faz sempre com uma teologia caricata, caduca, fundamentalista e, portanto, socialmente perigosa. Para sustentar lógicas de poder é necessário uma formulação doutrinal que interprete o Novo Testamento à luz do Antigo Testamento. O contrário é impensável! Não é a religião antiga que deve ser revista à luz de Jesus, Deus feito homem, mas é Cristo que deve se adaptar às antigas lógicas religiosas. Por qual motivo? Pelo fato de que Jesus desmontou a ideia de religião como poder, estabelecendo a lógica do serviço. Uma visão de Deus como servidor é inútil para sustentar as teologias de domínio e de poder. A expressão “o Filho do homem veio para servir e não para ser servido” (Mt 20,28; Mc 10,45) precisa ser substituída pelo velho grito de guerra da cristandade “Christus imperat!” (Cristo impera!). Se Deus domina, impera, seus adoradores são justificados nas suas lutas por poder. Todo fundamentalismo, que infantiliza as consciências, tem em mente projetos de poder.
Nesse sentido volto ao ponto com o qual iniciei o texto, a questão não numérica, mas de identidade teológica dos novos rostos dos cristianismos brasileiros. Não me preocupa se no futuro os evangélicos serão ou não a maioria, mas sim que tipo de evangélicos teremos. Não me preocupa se o número de católicos irá, finalmente, se estabilizar, mas que tipo de católicos teremos. Se o que cresce, como aparentemente se vê, são os movimentos fundamentalistas tanto no mundo evangélico, quanto no católico, então o cenário é muito preocupante para a saúde da sociedade.
Um dado, porém, é interessante: crescem também numericamente os sem religião. Estes podem ser ateus, agnósticos ou, simplesmente, crentes que não mais se adequam às estruturas das igrejas que estão aí. E creio que esse crescimento seja uma resposta. Uma resposta ao crescente fundamentalismo que exige que as pessoas cultivem uma fé infantil, alienante, não arejada racionalmente. Diante de formas religiosas que aprisionam, esse grupo rejeita as ideias de Deus que são sustentadas pelo atual cenário religioso brasileiro.
Aqui digo algo que talvez para alguns seja escandaloso: uma sociedade que no futuro seja menos religiosa, será, também, mais saudável. Não digo isso por não acreditar na dimensão religiosa do ser humano, seria um contrassenso. Digo isso por entender que a religião é uma faca de dois gumes, que pode transformar as pessoas em seres humanos livres, mas que pode ser usada como instrumento de domínio e alienação. E no Brasil de 2025 a segunda opção está mais evidente.
Acredito que uma sociedade laica, em que os valores humanos se cruzem com os valores verdadeiramente evangélicos, trará aos cristianismos brasileiros um desafio, mas também, novo frescor. A religião terá que prestar contas à não-religião exatamente naquilo que diz respeito aos direitos humanos, ao bem comum, ao cuidado com o planeta, às lógicas extrativistas mercantis, a aceitação da diversidade de opiniões e de modos de vida, etc. O que puder sobreviver a esse embate será, talvez, aquilo que Jesus quis de fato para a sua comunidade.