A Pastoral da Moradia e Favela Nacional vem apresentar o artigo elaborado por Betânia de Moraes Alfonsin, em que compartilha a situação após as enchentes no Rio Grande do Sul, que afetaram mais duramente a população pobre, enquanto os poderes públicos falharam na prevenção. A reflexão alerta para que o Brasil avance em políticas de prevenção de novos desastres de caráter urbano-ambientais.
Betânia de Moraes Alfonsin é Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, Professora e Pesquisadora do Mestrado em Direito da FMP, Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Urbanístico e direito à cidade da FMP e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.
Leia o artigo:
A enchente de maio de 2024 no estado do Rio Grande do Sul foi, literalmente, um divisor de águas no debate nacional sobre as mudanças climáticas. Em que pese os debates internacionais sobre clima estarem na pauta das Nações Unidas desde o século passado, quando o Pacto Internacional para redução de gases causadores do efeito estufa foi firmado em Kioto, em 1997, a enchente de 2024, no RS, teve um efeito demonstração devastador no país, evidenciando que os alertas dos cientistas que pesquisam o clima, outrora ignorados ou subestimados, devem ser urgentemente levados em consideração.
Foi a partir daí que governos e sociedade civil parecem ter despertado para o tamanho do problema a ser enfrentado, especialmente pelas cidades, no país que abriga a maior e mais ameaçada floresta tropical do planeta. A questão que era encarada como um alerta para o futuro fez-se presente e exige uma rápida revisão das políticas públicas de prevenção e enfrentamento de danos causados por eventos climáticos, o que envolve desde adoção de instrumentos de planejamento urbano e ambiental, reforço de dotações orçamentárias em caráter emergencial e preventivo, desenvolvimento de programas habitacionais pós-desastre, até uma análise das responsabilidades e competências dos entes da Federação.
1. Direito à moradia no Direito Internacional e no Brasil
O direito humano à moradia adequada é reconhecido em vários pactos de Direito Internacional desde a Declaração de Direitos Humanos de 1948, mas sem dúvida alguma é a partir do PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS. Foi a partir daí que o Comitê de direitos econômicos, sociais e culturais da ONU formulou e publicou o COMENTÁRIO GERAL nº 4, detalhando o que o Pacto queria dizer quando falava em direito à moradia adequada. O documento acabou se tornando a principal referência internacional de explicitação do conteúdo do direito humano à moradia. Segundo o Comentário Geral nº 4, a moradia adequada abrange sete aspectos, verdadeiros componentes do referido direito: (i) segurança legal da posse; (ii) disponibilidade de serviços, materiais e infra-estrutura; (iii) custo acessível; (iv) habitabilidade; (v) acessibilidade (vi) localização (vii) adequação cultural, demonstrando que esse direito é muito mais do que um teto.
No Brasil, a Constituição de 1988 inclui incluindo o direito à moradia no rol dos direitos sociais no caput do artigo 6º da Constituição, que tem atualmente a seguinte redação:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Grifo nosso).
Para além dessas menções, a Constituição de 88 incluiu, por primeira vez na História das constituições brasileiras, um capítulo sobre Política Urbana, incluindo aí uma disposição relacionada à usucapião urbana especial para fins de moradia, no artigo 183 da Constituição, reconhecendo o direito de posseiros a tornarem-se proprietários do lote ocupado:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Apesar de todos esses avanços desde a promulgação da Constituição Federal e regulamentação do capítulo da Política Urbana pelo Estatuto da Cidade, o direito humano à moradia adequada ainda é pouco protegido no país [1], havendo ainda um imenso contingente de pessoas que vivem em favelas e comunidades urbanas no Brasil. Segundo o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE em 2022, são 16.390.815 pessoas, ou aproximadamente 8% da população brasileira que reside em favelas e comunidades urbanas no país. Tal dado demonstra que União, Estados e municípios brasileiros estão faltando no exercício de suas competências relacionadas aos programas habitacionais e de melhorias habitacionais em todo o território nacional. De outra parte, demonstram a insuficiência de programas como o Minha Casa, Minha Vida, que, embora, desde sua criação, em 2009, já entregou cerca de 7,7 milhões de novas unidades habitacionais em todo Brasil [2], não foi capaz de diminuir os números da irregularidade no país, que segue bastante elevada, como visto.
2. As mudanças climáticas e a enchente no Rio Grande do Sul
Não é necessário ser um gênio da meteorologia para entender que com o aumento da temperatura, aumenta também a evaporação de água dos oceanos, bem como da superfície da terra e que tal fenômeno ocasiona o aumento do volume de chuvas no planeta. Esse fenômeno teria impactos importantes em qualquer região do planeta, mas é particularmente grave em áreas fortemente urbanizadas e densamente povoadas, considerando os altos índices de impermeabilização do solo e o aumento do risco de alagamentos que decorre dessa combinação de fatores.
Quando esse tema se combina à história da urbanização do Brasil, fortemente marcada por desigualdades, encontramos um cenário perfeito para tragédias urbano-ambientais de grande magnitude, que vem se agravando em intensidade e frequência
Em maio de 2024, entre os dias 27 de abril e 02 de maio, o Rio Grande do Sul foi atingido por um volume de chuva equivalente a meio reservatório da hidrelétrica de Itaipu. Os dados são da Climatempo e dão conta de 477mm acumulados somente no mês de maio. Esse volume de chuva atingiu 298 municípios, ou 60% dos municípios do estado, provando inundações e muita destruição pelo caminho percorrido pelas águas [3]. Municípios do Vale do Rio Taquari e municípios da região metropolitana de Porto Alegre, localizados no Delta do Jacuí e/ou banhados pelo Guaíba, foram tomados pela maior enchente da história do estado.
A enchente atingiu tanto bairros regulares das cidades quanto áreas irregularmente ocupadas e é claro que a tragédia afeta a todos, mas afeta mais duramente a população de menor renda, já que as casas são historicamente precárias e construídas com materiais de menor qualidade, sem projeto arquitetônico e, muitas vezes, sem acesso à infraestrutura adequada. Decorre daí a compreensão de que quando eventos climáticos extremos ocorrem, como enchentes, são os pobres das cidades que sofrem os maiores danos, perdendo tudo sob a força das águas e, no caso das enchentes de 2024, foi exatamente o que aconteceu. Na época, a Defesa Civil do Estado apontou que mais de 615 mil pessoas tiveram de abandonar suas residências no RS. Ocorre que, enquanto a população de maior renda de Porto Alegre, por exemplo, saiu da cidade e se dirigiu para regiões como o litoral, região não atingida pela enchente, a população das favelas da capital atingidas pelas cheias, sem possibilidade econômica de fazer o mesmo, se viu desamparada e foi acolhida em abrigos públicos e privados, montados em regime de urgência naquele momento.
O mapa abaixo gerado pelo Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles demonstra de maneira inequívoca o quanto as populações mais pobres foram as mais penalizadas naquele evento climático:

É preciso reconhecer que houve uma grande mobilização social e comunitária, em um movimento de solidariedade e cooperação que acolheu pessoas e animais em abrigos provisórios em igrejas, escolas, sindicatos, prédios públicos e até mesmo garagens de particulares, durante o auge do fenômeno e antes do momento em que era possível avaliar a possibilidade de voltar para casa. Em que pese esses esforços devam ser reconhecidos, a responsabilidade pelo acolhimento dos flagelados pela enchente é do poder público e entende-se que os poderes públicos falharam na manutenção dos sistemas de prevenção de enchentes no caso de cidades como a capital Porto Alegre, o que contribuiu para os danos sofridos particularmente pelos pobres da cidade, em um fenômeno de racismo ambiental. Enquanto algumas famílias puderam voltar às suas casas com uma mera limpeza e higienização do ambiente, após o retorno do Guaíba ao seu leito, famílias de baixa renda foram atingidas de maneira desproporcional, perdendo absolutamente tudo sob a força das águas. Embora políticas emergenciais (como o auxílio moradia) e políticas permanentes (como a compra assistida) tenham sido implementadas, é preciso reconhecer que tais políticas estão muito longe de atender às milhares de famílias que tiveram seu direito à moradia violado.
3. Conclusões
Considerando a aceleração da frequência e da intensidade de fenômenos climáticos extremos e de graves consequências, conclui-se o presente artigo apontando a necessidade de revisão dos planos diretores dos municípios e os processos de urbanização das cidades, a fim de aumentar a permeabilidade do solo através da adoção de infra-estruturas verdes (como parques que possam funcionar como esponjas em momentos de chuvas muito intensas, adoção de telhados verdes) e infraestruturas azuis, como a manutenção de áreas que possam apoiar o sistema de drenagem das águas pluviais porque já são dotadas naturalmente de água, como manguezais, várzeas e planícies alagáveis. Ao lado das políticas públicas de reparação, que atuam sobre o dano causado às famílias, é urgente que o Brasil avance em políticas de prevenção de novos desastres urbano-ambientais, especialmente considerando que as mudanças climáticas não nos trarão problemas no futuro: elas já estão aqui e precisamos mudar nossa maneira de viver e consumir nas cidades se quisermos construir um futuro menos hostil para nosso povo.
Para a Pastoral da Moradia, fica o desafio de ser capaz de ser presença ativa e solidária nas comunidades atingidas por eventos climáticos extremos no Brasil, o que inclui secas prolongadas, inundações, ondas de calor e incêndios, a fim de apoiar a organização do povo em um cenário tão adverso. Tal mobilização é urgente e todos os cristãos e cristãs estão convocados a participar desta tarefa de organização.
Notas:
[1] Para mais dados demográficos e detalhes da informação, ver: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/ Acesso em 17 jan 2025.
[2] Conforme dados da Casa Civil em 2024. Ver: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2024/abril/saiba-quais-sao-as-cidades-beneficiadas-nas-modalidades-rural-e-entidades-do-minha-casa-minha-vida#:~:text=Retomada%20do%20Programa,de%20novas%20unidades%20at%C3%A9%202026. Acesso em 17 jan 2025
[3] Os dados são da Agência Brasil, Ver: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-06/calamidade-gaucha-73-cidades-tiveram-pelo-menos-10-da-area-atingida#:~:text=Calamidade%20ga%C3%BAcha%3A%2073%20cidades%20tiveram%20pelo%20menos%2010%25%20da%20%C3%A1rea%20atingida,-Na%20capital%20do&text=O%20maior%20desastre%20clim%C3%A1tico%20do,em%20maior%20ou%20menor%20grau. Acesso em 31 jan 2025.
[4] Fonte: Observatório das Metrópoles, Núcleo Porto Alegre. Ver: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/nucleo-porto-alegre-analisa-os-impactos-das-enchentes-na-populacao-pobre-e-negra-do-rio-grande-do-sul/ Acesso em 31 Jan 2025.