Sob o discurso de beneficiar famílias, medida alimenta a concentração de terras e ameaça comunidades tradicionais
Por Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional),
com informações das regionais da CPT Amapá e Rondônia
Reunido com representantes e produtores do agronegócio no Amapá, o senador Randolfe Rodrigues (PT) apresentou o repasse final de todas as terras da União para o Estado. O repasse das terras é o pontapé definitivo para o avanço da agropecuária no Estado, além de facilitar o acesso a crédito, compra de maquinários e armazenamento da produção. As últimas sete glebas que faltam, devem ser repassadas nesta quinta-feira (13), com a presença do presidente Lula para inaugurar obras.
Em abril de 2024, o Governo do Amapá já havia recebido duas porções de terras da União georreferenciadas pelo Exército Brasileiro (glebas Tucunaré e Apurema), localizadas entre os municípios de Amapá, Pracuúba e Tartarugalzinho. A alegação é de que a doação beneficiaria as famílias que ocupam áreas irregulares há mais de 30 anos, mas a iniciativa beneficia principalmente produtores rurais que buscam os registros das terras onde exploram e desmatam de forma irregular.
De acordo com o padre Sisto Magro, da coordenação da CPT Regional Amapá, as últimas glebas estão mais próximas da capital Macapá, e até no interior do município, sendo a maior parte delas comunidades quilombolas, algumas reconhecidas e outras em processo de reconhecimento. São terras muito requeridas pelo agronegócio, não apenas para o plantio de soja, mas também para mineração e exploração de madeira – chamada pelo nome de “manejo florestal empresarial”.
Interesses Ocultos e ameaça às comunidades tradicionais
O grande perigo à vista é de que os invasores de terra, que não podiam se apropriar facilmente por estarem em propriedades da União, encontrem agora uma maior facilidade, já que o órgão estadual (Amapá Terras) não possui um departamento específico para efetivação da reforma agrária.
“O Amapá Terras simplesmente faz a regularização, que é reconhecer quem está na área como posseiro e titular. Por causa disso, muitos conflitos se acirraram nos últimos anos, porque enquanto o Incra cuidava da reforma agrária, tinha algumas leis sobre o perfil do agricultor apto para a destinação da terra: a pessoa precisa estar presente na terra e trabalhar com ela para se sustentar e sua família. O Amapá Terras reconhece pessoas que não preenchem o perfil como aptas à reforma agrária, e não faz distinção entre a posse de forma direta ou indireta, e assim o proprietário pode morar em outro estado, o que beneficia empresários do sul do Brasil que têm posse sobre essas terras”, afirma Sisto.

“O Amapá não tem uma estrutura pública de atuação agrária, então certamente não vai implementar nenhum modelo de fortalecimento da agricultura familiar”
Um dos exemplos é o das terras da Flota (Floresta Estadual do Amapá), de 2,5 milhões de hectares, que ainda não estão sendo usadas de forma direta pelo agronegócio, mas terão o acesso facilitado a partir da transferência para o estado. “Até agora, o MPF atuou bastante, impedindo esse impacto, mas agora não poderá fazer mais nada,” acrescenta.
Os processos têm acontecido de modo apressado, facilitado também pela influência de lideranças políticas do estado do Amapá no Congresso Nacional, como é o caso do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil), além do próprio Randolfe Rodrigues, líder do governo na Casa.
“Essa reunião do senador Randolfe com a representação do latifúndio é muito simbólica, e representativa da condução política que está acontecendo no estado. O Amapá não tem uma estrutura pública de atuação agrária, então certamente não vai implementar nenhum modelo de fortalecimento da agricultura familiar. A tendência é que essas posses reconhecidas pelos grupos econômicos, que estão acontecendo a rodo, vão rapidamente se transformar em títulos, pressionando para que as posses tradicionais amazônicas não existam mais, e essa população sem terra vá ocupar as periferias das cidades, aumentando os conflitos e a violência. O nosso estado tem dependência de produção de alimentos, tudo que a gente compra vem de fora, mas só a agricultura familiar tem essa capacidade de produzir de acordo com os hábitos alimentares e colocar nos mercados locais. E o agronegócio não produzirá alimentos nem gerará recursos para o mercado interno, além de causar os vários impactos ambientais e climáticos. Parece claro que essa onda de produção industrial do agronegócio nada mais é do que uma estratégia simplória, mas muito eficiente, de apropriação de grandes porções de terra”, alerta Marcos Velho, da Assessoria Jurídica da CPT Amapá.
Transferência das terras foi facilitada com o impedimento da ADI 7052
As decisões do governo estão sincronizadas diretamente com as decisões vindas do Supremo Tribunal Federal (STF). No último dia 13 janeiro, de forma monocrática, o ministro Dias Toffoli decidiu não dar prosseguimento à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7052, protocolada em dezembro de 2021 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), junto com organizações sociais como a Comissão Pastoral da terra (CPT), Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). A alegação do ministro é de que a CONTAG não tem legitimidade para mover este tipo de ação, pois representa trabalhadores rurais agricultores, que não seriam afetados de forma direta com as mudanças. Contudo, a CONTAG sustenta que os trabalhadores rurais são potenciais beneficiários das terras, justificando sua legitimidade.
“Nós discordamos completamente da decisão e apresentamos um agravo regimental”