Vivemos tempos em que o sistema global, já fragilizado, começa a ruir sob o peso de fenômenos políticos que expõem suas contradições mais profundas. O chamado “trumpismo” — mais que uma liderança pontual — tornou-se um movimento de alcance mundial, que questiona as estruturas institucionais, desestabiliza as relações internacionais e agrava desigualdades. Seu impacto atinge diretamente as populações mais vulneráveis, comprometendo sua sobrevivência cotidiana.
O Papa Francisco, em sua exortação Laudate Deum, nomeou o espírito desta época: hiperindividualismo. É essa lógica que tem guiado o comportamento dos blocos hegemônicos, orientados por interesses próprios, sem compromisso real com o bem comum. A antiga máxima popular “cada um por si e Deus por todos” foi, inclusive, reformulada por grupos fundamentalistas como “Deus acima de tudo” — expressão que, longe de um verdadeiro sentido religioso, instrumentaliza a fé para legitimar ideologias de exclusão e violência. O resultado é um ambiente de aporofobia — o medo e desprezo pelos pobres — e de mistanásia, a morte social dos mais frágeis.
Não é por acaso que, paralelamente, florescem fenômenos religiosos liderados por influenciadores digitais que se apresentam como autoridades espirituais. Utilizando a linguagem da religiosidade popular, mobilizam grandes públicos, mas o fazem em nome de um projeto individualista e alienante. Alimentam doutrinas de medo, legalismo e pensamento único, contribuindo para uma sociedade apática, descrente da política e desconectada do compromisso coletivo.
Nesse contexto, tornam-se alvo aqueles que apontam para outra direção: a sinodalidade na Igreja, a figura do Papa Francisco, os bispos e a CNBB, e, de forma emblemática, a Campanha da Fraternidade — expressão de uma fé encarnada e transformadora que há sessenta anos trabalha pela justiça social. O ataque a essas instâncias não é apenas religioso, mas ideológico: visa desmontar qualquer tentativa de articulação entre fé, participação cidadã e transformação da realidade.
O colapso que hoje se desenha não é novo. A crise institucional e democrática associada ao governo Trump, por exemplo, não surgiu do nada. Ela revela o esgotamento de um modelo de poder que, como a estátua do sonho de Nabucodonosor descrita no livro de Daniel — com seus pés de barro — parecia sólido, mas era estruturalmente instável.
Há dez anos, o Papa Francisco — um líder vindo das periferias do mundo — tem chamado a humanidade a cuidar da Casa Comum, propondo uma ecologia integral que vai muito além das questões ambientais. A crise que enfrentamos é também relacional, cultural e espiritual. Reverter esse cenário exige mais do que técnicas ou reformas econômicas: exige reencontrar o sentido de humanidade partilhada, reconstruir vínculos e reconhecer que tudo está interligado.
Em tempos de medo e desorientação, é preciso voltar a escutar o som do jobel, símbolo bíblico do jubileu, que convoca à libertação, ao recomeço e à esperança. Mais do que um chamado espiritual, é uma convocação ética: a não ceder ao desespero nem à indiferença, mas assumir, com lucidez e coragem, a missão de reconstruir o comum.

Este artigo foi editorial da Rede de Notícias da Amazônia em 10 de abril de 2025.

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