28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o país apresenta maior número de resgates, porém com o quadro de auditores fiscais reduzidos, agentes cobram por mais estruturas e segurança.
Por Cláudia Pereira | CEETH
Mais de três mil trabalhadores foram resgatados de situação em trabalho análogo a escravidão no Brasil em 2023. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego aponta que foi o maior número dos últimos 14 anos. Por trás do alto número de resgates está a deficiência na fiscalização com poucos auditores que enfrentam o menor nível em 30 anos, além da falta de estrutura e condições de trabalho. Na semana passada (16/01) a categoria, que atua no combate ao trabalho escravo, parou seus trabalhos em protesto ao descumprimento de acordo firmado em 2016. As operações de resgates estão suspensas na maior parte do país.
28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, a data foi instituída através da Lei 12.064/2009, que faz memória ao assassinato de três auditores fiscais do trabalho e o motorista, ocorrido em janeiro de 2004, durante a fiscalização de propriedades rurais da região de Unaí (MG). 28 de janeiro é também dia do Auditor Fiscal do Trabalho, que é um agente público com a função de assegurar o cumprimento das obrigações previstas na legislação trabalhista para garantir que os direitos dos trabalhadores/as sejam respeitados. Embora os assassinos da chacina de Unaí tenham sido condenados tardiamente, o sentimento dos agentes públicos é de injustiça. Desde a instituição da data, pouco foi feito para garantir a segurança dos agentes, sobretudo aqueles que atuam na área rural.
Para saber o papel do auditor fiscal para o enfrentamento do trabalho escravo, a reportagem conversou com Magno Pimenta Riga, Auditor Fiscal, que atua no combate ao trabalho escravo. Ele analisou o contexto atual no Brasil para o enfrentamento, falou da importância do agente fiscalizador e apontou para os riscos e hostilização que os agentes sofrem nas operações. Magno coordena uma das equipes de Combate ao Trabalho Escravo vinculada à Secretaria Especial do Trabalho em Brasília (DF): o Grupo Móvel atua em todo território nacional. Ingressou na carreira de auditor fiscal em 2011, trabalhou no estado de Rondônia e há sete anos atua no Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo. O Grupo Móvel é uma política Estado criada para combater o trabalho escravo em 1995.
“É uma injustiça decorrente da impunidade, somente agora, 20 anos depois por terem vivido suas vidas em plena liberdade tendo feito o que fizeram eles foram condenados, essa impunidade já aconteceu”. Afirma Magno Riga em referência à chacina de Unaí.
Como você avalia o trabalho dos agentes, considerando este momento que atravessamos no país, vinte anos do assassinato dos auditores fiscais em Unaí (MG), quais são as melhorias neste trabalho que também é uma missão?
A chacina de Unaí em 2004, aconteceu alguns anos antes de ingressar na carreira e esse fato sempre esteve muito presente. Existe um sentimento de grande injustiça em relação aos mandantes do crime, que somente agora foram presos e recebem a condenação definitiva pelos crimes que cometeram. Então, essa é uma injustiça decorrente da impunidade, somente agora, 20 anos depois de terem vivido suas vidas em plena liberdade, eles foram condenados. Mesmo que eles sejam presos agora, essa impunidade já aconteceu. Então esse sentimento de injustiça trás o fato sempre à tona especialmente para quem está na linha de frente do combate ao trabalho escravo como nós, que somos do grupo móvel.
Não apenas a impunidade continua presente, mas os riscos também. Vou citar como exemplo uma das operações que nós realizamos, junto a diversos outros órgãos para desintrusão da Terra indígena Apyterewa, São Félix do Xingu, no sudoeste do Pará. Fizemos alguns resgates e agentes públicos que estavam participando da operação foram alvejados, tiros passaram alguns metros de distância de colegas. Ao longo desses anos pouco foi feito para minimizar esses riscos. Há mais de dez anos atuando, percebo cada vez mais a hostilização contra os agentes de fiscalização. Outra forma onde se percebe que o risco é mais alto é que o crime organizado está inserido em vários grupos econômicos. Trabalhar com colete balístico é algo recente, assim como o protocolo de segurança que é vigente desde 2022 que ajuda a diminuir os riscos.
A função do Agente Auditor Fiscal de combate ao trabalho escravo, em especial como outras que a fiscalização do trabalho exerce, tem um pouco a natureza de missão certamente. Nos dedicamos a esse trabalho por longos períodos longe de casa, às vezes também em situações precárias, fazemos com muita dedicação porque a gente tem consciência da importância de alcançar esses cidadãos que estão sendo submetidos a essa violência. É um privilégio fazer parte, nos traz um senso de justiça, satisfação pessoal em realizar algo muito maior, que é executar uma ação do Estado que busca corrigir um problema que é da nossa formação como sociedade.
“Temos conseguido dar continuidade e avançar nessa política pública de combate ao trabalho escravo, embora sejam muitas as adversidades”.
Qual o papel do auditor fiscal do trabalho escravo, diante desse número cada vez mais crescente de denúncias?
A auditoria de fiscalização do trabalho é responsável pela condução da política pública repressiva do estado brasileiro. O combate ao trabalho escravo surgiu em 1995 no âmbito do Ministério do Trabalho e vem sendo desenvolvido e tendo como principal protagonista institucional a auditoria do trabalho desde então. Nestes 20 anos completos da chacina de Unaí, onde foram assassinados trabalhadores da fiscalização do trabalho escravo, a política pública não deixou de ser executada. Foram diversos governos, diversos contextos internos e externos que influenciaram e o que nós temos observado é um contínuo avanço da política pública. Uma vez que as estimativas sobre o trabalho escravo no Brasil mostram, que apesar de já termos resgatado mais de 66.000 trabalhadores ao longo desses quase 30 anos de história do Grupo Móvel do Combate ao Trabalho Escravo, nós temos milhares de trabalhadores ainda sendo escravizados no Brasil.
Hoje o papel do fiscal do trabalho dentro dessa política pública, primeiro é dar continuidade a ela e não permitir que as diversas situações políticas e sociais impeçam que haja retrocesso, pelo contrário nós temos conseguido dar continuidade e avançar nessa política pública de combate ao trabalho escravo, embora sejam muitas as adversidades. Um segundo papel e tem sido esse o nosso esforço nesses últimos anos, é alcançar públicos, alcançar trabalhadores que são escravizados e trabalhadores vulneráveis que não vinham sendo alcançados antes. Temos desenvolvido ferramentas de inteligência, ferramentas de organização para conseguir atender as denúncias mais rapidamente para conseguir chegar a lugares que historicamente nós não tínhamos atuado, alcançar atividades econômicas que não eram antes fiscalizadas. Esses têm sido os principais desafios para aperfeiçoar o combate ao trabalho escravo.
“Dentro do estado do Amazonas, estatisticamente falando, é um local que atuamos pouco”
Quais mecanismos têm ajudado na fiscalização e quais as regiões do país os agentes encontram mais dificuldades para fiscalizar?
Temos buscado a interlocução interinstitucional que é uma das características de combate ao trabalho escravo, desde o início ele é feito por várias instituições em conjunto. A auditoria trabalha com esse papel de coordenar o combate ao trabalho escravo dentro da política pública, mas sempre foi executada por diversas instituições: Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF) e mais recentemente Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF), são as principais instituições públicas que atuam no combate ao trabalho escravo. É contínuo a busca pelo aperfeiçoamento nessa relação interinstitucional, especialmente considerando que a troca de informações e inteligência de acesso a mapas mais precisos e as denúncias que são apresentadas a outros órgãos. Essa troca de informações é essencial para que haja uma maior efetividade.
Com relação a dificuldade de fiscalização, uma região em que há menos atuação e também poucas denúncias em razão da menor presença do Estado, eu diria há alguns anos, é o estado do Amazonas. A atuação é de menor incidência, embora o Grupo Móvel desde o início atuou muito forte na Amazônia devido ao grande número de denúncias vindas de região de fronteira agrícola especialmente, mas também por ser uma região mais carente de presença do Estado. A própria Auditoria de Fiscalização do Trabalho tem menos agentes e pouca capilaridade. Historicamente o Grupo Móvel sempre atuou na Amazônia e na fronteira agrícola amazônica como um todo, mas dentro do estado do Amazonas estatisticamente falando é um local que atuamos pouco.
Qual a importância das denúncias sobre trabalho escravo e como ajudam na fiscalização?
As denúncias são fundamentais porque muitas das situações que levam as escravizações dos trabalhadores são feitas no subterrâneo, são feitas às escondidas de forma camuflada e conseguem passar abaixo dos radares e não são identificadas. Temos diversos casos de trabalho escravo na cidade de São Paulo, por exemplo em que os trabalhadores foram encontrados em oficinas de costuras em bairros residenciais. Os trabalhadores em situação de trabalho escravo, eram migrantes bolivianos e de outras nacionalidades que estavam por trás de muros alojados e identificáveis, situações e lugares poucos suspeitos. Essa mesma situação temos nas regiões de fronteira agrícola da Amazônia em fazendas onde o acesso geográfico social é isolado. A denúncia tem esse papel fundamental de trazer visibilidade para uma situação de violência muito grave. As denúncias nos dão um norte para direcionar os nossos esforços e através dela podemos fazer um mapeamento. Portanto é fundamental os canais de denúncia. Recebemos denúncias do Disque 100 que é um número de telefone em que qualquer pessoa pode ligar, inclusive de forma anônima e fazer a denúncia. O Disque 100 é um canal dos direitos humanos e ele tem uma característica muito boa que é o fácil acesso, é só pegar o telefone, ligar e não precisa se identificar, é só relatar as informações.
Temos o nosso canal próprio de denúncias que é o site do sistema IPÊ, por enquanto não tem disponível aplicativo, somente pela internet. O ipe.sit.trabalho.gov.br é um canal de denúncias da fiscalização do trabalho um pouco mais difícil considerando o acesso à internet, às vezes as pessoas terão dificuldades para preencher através do celular e é melhor utilizar um computador para responder ao questionário que é bem amplo. A pessoa tem que ter condições de responder esse questionário. Sempre que recebemos denúncias realizadas através do canal IPÊ, nós provavelmente vamos conseguir atender devido a riqueza de informações que a gente precisa para chegar àquela situação denunciada. Temos orientado as pessoas quando encontrar dificuldades, se possível procurar o apoio de uma instituição, eu cito a Comissão Pastoral Terra (CPT), como um dos nossos principais canais de denúncias. Caso não consiga utilizar o site, pode ligar no Disque 100, o que importa é que as denúncias tenham visibilidade e elas são fundamentais para o nosso trabalho.
As políticas públicas no combate ao Trabalho Escravo avançaram e atualmente temos instrumentos que colaboram no enfrentamento sobretudo com as punições, como tem sido a utilização destes instrumentos para o enfrentamento?
As políticas públicas no início da década dos anos 2000 foram muito importantes para o desenvolvimento de instrumentos. Nesse tempo surgiu a alteração do código penal onde o artigo 149 define o crime do trabalho escravo; foi criado o benefício do seguro-desemprego para o trabalhador resgatado. Todo trabalhador que nós resgatamos do trabalho escravo recebe 3 parcelas de um salário-mínimo de seguro-desemprego emitido pela auditoria fiscal do trabalho. Não precisa o empregador ser identificado necessariamente, é importante que nós conseguimos identificar o trabalhador para que ele possa receber o benefício; surgiu a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), que sempre foi vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e tem um papel de articular tanto as instituições públicas, como as organizações da sociedade civil.
Nesse cenário de institucionalização do combate ao trabalho escravo, surgiu o cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores à condição análogo à escravidão, também chamado de “Lista Suja” que é atualizado a cada 6 meses. Por muito tempo ele foi muito questionado pelos empregadores porque seria uma punição. Depois de decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, o cadastro de empregadores serve para dar publicidade à sociedade a respeito de quem foi flagrado cometendo o trabalho escravo. É um instrumento muito poderoso que visa justamente tornar esse dado público, para que a sociedade possa reconhecer quem são os escravagistas do século 21. Por exemplo, um pecuarista que é incluído na Lista Suja não vai conseguir fazer um financiamento do BNDES para comprar uma nova fazenda ou maquinário para o seu estabelecimento, não poderá vender seus produtos, não vai conseguir exportar a carne, porque os outros países acompanham a atualização. A Lista Suja gera uma série de consequências, cujo objetivo final é superar e erradicar o trabalho escravo. Esses mecanismos todos são muito importantes para que a gente possa efetivamente combater o trabalho escravo de forma mais ampla, não conseguimos chegar em todas as situações, mas indiretamente podemos fazer com que a sociedade, com os próprios produtores e a economia como um todo, avance no sentido de erradicar o trabalho escravo.
“O trabalhador escravizado é tratado como coisa, é isso que significa na prática a mercantilização de vidas”.
Magno, como você vê essa mercantilização de vidas na função de Auditor Fiscal do Trabalho?
O trabalhador escravizado é tratado como coisa, é isso que significa na prática a mercantilização de vidas. As pessoas são tratadas como se fossem objetos, como se fossem coisas. Então, uma coisa é dormir num barraco no meio da floresta sem banheiro, sem água, sem salário, sem saber se volta para a família, ser trancado dentro de um caminhão e não saber para onde está sendo levado, ser vítima de um cárcere privado e obrigado a trabalhar 14 horas por dia para poder comer. São essas situações que nós flagramos nas fiscalizações, são processos de coisificação do ser humano. O processo de tratar o ser humano como inferior, como se fosse um objeto é a mercantilização do trabalho. Para a Organização Internacional do Trabalho o ser humano não pode ser mercantilizado, é necessário combater essa mercantilização do trabalho que não acontece só no trabalho escravo. A reforma trabalhista de 2017 é a disseminação da precarização do trabalho. Temos exemplo da precarização do trabalho nas plataformas, na terceirização desenfreada e no trabalho infantil. É necessário resgatar a humanidade das pessoas, do trabalhador que não pode ser visto como número e gerador de riqueza. Não pode ser visto como empreendedor o termo da moda, o trabalhador é um ser humano em primeiro lugar, um sujeito de direitos, é uma pessoa que pode muitas vezes estar num contexto de fragilidade e vulnerabilidade e está exposto ao risco. O Estado e a sociedade como um todo tem o papel de cuidar dessa pessoa como ser humano, sem fazer diferença do quanto ela tem guardado no banco. O resgate desse humanismo é importante para que a gente possa reverter um pouco desse processo de mercantilização.
Ouça a entrevista completa com Magno Riga “Na Trilha do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” através da plataforma do Spotify.
Trabalho Escravo é crime, denuncie
Uma das formas para enfrentar a violência do trabalho escravo é fazer a denúncia. Além de contribuir no mapeamento, são ações que salvam vidas. Mesmo que as denúncias sejam baseadas em suspeitas, pode ser feita através do Disque 100 ou acesse a plataforma Ipê ipe.sit.trabalho.gov.br, o canal de denúncia Ipê é um site ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego que recebe e encaminha denúncias exclusivas de crime de trabalho análogo ao de escravo. Outra forma é procurar ajuda através de organizações ligadas à igreja católica e solicitar orientações e ajuda, a Comissão Pastoral da Terra é uma delas.