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Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano
Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração

 

*Por Tatiana Oliveira

 

 

No Brasil, depois de quatro anos em que a ciência do clima esteve sob fortes ataques, um novo governo foi eleito com a promessa de conciliar aspirações desenvolvimentistas com a conservação ambiental. O objetivo seria promover a transição ecológica da economia nacional e, assim, retomar o protagonismo internacional do país na agenda climática.
Como parte das iniciativas nessa agenda, em 04 de outubro de 2023, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado Federal aprovou, por unanimidade, o projeto de lei (PL) nº 412/2022, que cria um mercado regulado de carbono no Brasil. A relatoria da proposta ficou à cargo da senadora Leila Barros (PDT-DF), que também preside a CMA.

 

O chamado Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) replica o modelo europeu. Por um lado, traz aspectos regulatórios; por outro lado, cria um mercado para viabilizar trocas (compra e venda) de licenças para poluir. O PL corre em caráter terminativo, o que significa que tramitará nas comissões sem passar pelo plenário, salvo se houver uma demanda explícita para uma discussão mais ampla entre os parlamentares.

 

Qual a lógica por trás da criação dos mercados de poluição?

 

De modo geral, existem duas formas de promover políticas socioambientais: a) comando e controle (direito negativo); b) instrumentos econômico-financeiros (incentivos positivos). Os mercados de poluição se enquadram nessa segunda categoria. Desse ponto de vista, a economia é considerada eficiente para alocar recursos, riscos e oportunidades por meio do sistema de preços, dispensando o Estado de impor uma determinada conduta com base em regras e ameaça de sanções.
A mesma crença nos preços que, hoje, orienta a criação dos mercados de poluição, justificou, na década de 1990, a liberalização comercial como forma de estimular maior eficiência na indústria e nos comportamentos dos agentes de mercado. Por isso, alguns analistas argumentam que o “consenso da descarbonização” se relaciona à financeirização da economia global e, mais especificamente, à financeirização da natureza. Dessa forma, de bem comum, a natureza passa a ser vista como um ativo financeiro. Mas o consenso da descarbonização não está dissociado das transformações na economia e nas finanças do nosso tempo. De acordo com alguns especialistas, o carbono se tornou um elemento central do chamado “Consenso de Wall Street” para reconstrução da economia no pós-crise de 2007/2008 e da pandemia de Covid-19.

 

A principal justificativa para instalação desses mercados é que eles facilitariam a adoção de ações para a mitigação dos gases de efeito estufa, uma vez que o comércio de créditos de poluição tem custo baixo. Assim, em vez de investir em tecnologias caras para reduzir os níveis de poluição das empresas, a aposta é na compra de licenças para poluir. Essas licenças permitem subtrair a poluição efetivamente lançada à atmosfera dos créditos de poluição adquiridos. Ou seja, com base em cálculo que relaciona emissões, de um lado, e atividades de mitigação (emissões evitadas, reduzidas ou removidas), de outro lado, chega-se a um determinado volume (líquido) de emissões.
 
O que é o mercado regulado e voluntário de carbono?

 

O mercado regulado e o mercado voluntário de carbono são formas de precificar o carbono ou a poluição atmosférica gerada pela atividade econômica. Dizemos que o mercado é regulado quando o governo estabelece quais setores serão objeto da regulação, além de definir quais níveis de poluição por setor e empresa tornam-se socialmente aceitáveis. Ao contrário, no mercado voluntário de carbono não incide regulação. As empresas que aderem a ele e o volume de poluição compensada respondem exclusivamente a uma estratégia corporativa.

 

 

O mercado voluntário de carbono já está em operação no Brasil. Na verdade, estamos em um momento em que começam a aparecer uma série de denúncias relacionadas à sua operação. As principais delas são: grilagem digital de terras públicas; assédio a povos indígenas, comunidades tradicionais e assentados; violação da Convenção 169 da OIT, que exige a Consulta Livre Prévia e Informada e respeito aos protocolos de consulta de cada povo quando da instalação de um projeto para a extração de créditos de carbono. Portanto, o que está em discussão no Congresso Nacional é a criação de um mercado regulado de carbono.

 

O Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE)
O SBCE prevê a distribuição de cotas de poluição às empresas. Por meio dessas cotas, o governo autoriza um certo nível de emissões de poluentes a empresas e setores econômicos. Ficam submetidas à regulação empresas que emitem acima de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente (tCO2eq) por ano, sendo de 25 mil tCO2eq o teto para emissões. De acordo com a proposição, os emissores que ultrapassarem o teto deverão compensar a poluição gerada por meio da compra de certificados de redução ou remoção de gases de efeito estufa ou créditos de carbono (offset).

 

Os certificados de redução ou remoção de gases de efeito estufa equivalem às reduções ou às remoções de emissões alcançadas pelas empresas já que estão sob o regime do SBCE. Após comprovada a redução ou a remoção das emissões por essas empresas, o governo poderá conceder-lhes títulos ou certificados transacionáveis em bolsa de valores, a fim de que seja possível vender o saldo de poluição gerado. O objetivo desta operação é que as empresas que descumpriram a norma tenham uma alternativa para comprovar o cumprimento das suas obrigações de redução de emissões de gases estufa. Outra opção é acessar os créditos de carbono gerados pelo mercado voluntário, também conhecidos como “offsets”.

 

Os offsets são baseados em estimativas  de reduções de emissões de gases de efeito estufa. Por exemplo, parte-se de um cálculo especulativo: quantas toneladas de gases de efeito estufa deixariam de ser lançadas na atmosfera na hipótese de que uma área de 20 mil hectares de floresta seja preservada em um período determinado? Outro exemplo: quantas toneladas de gases de efeito estufa deixariam de ser lançadas na atmosfera na hipótese de que houvesse a instalação de usinas eólicas para o fornecimento de energia elétrica em um município, com isso, suprimindo o uso de termelétricas? Com base nessa projeção afere-se o volume de créditos de carbono que poderiam ser, tecnicamente, gerados em uma propriedade ou por uma transição tecnológica.

 

Sobretudo quando remete ao papel das florestas, essa modalidade de créditos de carbono vem sofrendo questionamentos no mundo todo. Isso porque ele se baseia em um cálculo frágil, hipotético, sobre a capacidade de um ecossistema para sequestrar carbono da atmosfera. Acontece que, justamente, as florestas brasileiras estão no centro do interesse das empresas, nacionais e transnacionais. Pois contribuir para a proteção da floresta amazônica é uma estratégia de marketing que aumenta a credibilidade das empresas no jogo corporativo.
No entanto, um estudo da Universidade de Zurich, na Suíça, e da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, mostra que, nessa modalidade, a eficácia comprovada dos projetos de offset florestais não passa de ¼ ou 25%. Isso significa que ¾ ou 75% dos créditos gerados em áreas florestais não conseguiram comprovar a sua capacidade para sequestrar gases poluentes da atmosfera ou contribuir para a manutenção da integridade ambiental. O SBCE não veda o uso de créditos adquiridos do mercado voluntário no regulado. Desse modo, contribui para a maquiagem verde (greenwashing) das empresas; fraudes, que não contribuem nem para o meio ambiente e o clima, nem para os povos do campo, das florestas e das águas.

 

 

O “Parecer dos Povos” sobre o SBCE e seus principais problemas
Considerando a necessidade de ampliação do diálogo sobre a criação de um mercado regulado de carbono, o Grupo Carta de Belém elaborou um Parecer dos Povos sobre a Proposta de Criação de um Sistema de Cotas e Comércio de Emissões no Brasil. Neste parecer, são enumeradas preocupações de organizações da sociedade civil, movimentos sociais, sindicatos, academia e povos e comunidades tradicionais sobre a ampliação e funcionamento dos mercados de carbono no país.
É preciso lembrar que a questão ambiental não se limita à ciência climática ou a propostas de descarbonização. Aspectos sociais e ambientais devem ser considerados integralmente, além de ter reconhecida a dívida colonial que é a primeira causadora das mudanças climáticas. A métrica do carbono é reducionista, pois desvia a atenção das causas reais e imediatas do desmatamento.

 

Em resumo, argumenta-se que a preocupação com os negócios oportunizados pela precificação do dióxido de carbono no Brasil, conduziu a uma corrida pela aprovação de uma proposta legislativa que não contou com a participação social efetiva, nem com a escuta dos sujeitos que serão afetados negativamente por ela. É preciso garantir que não haverá retrocesso nos direitos. E atentar para os efeitos perversos, sobretudo, os relacionados à questão fundiária, os direitos à terra e território no Brasil.

 

 

  *Tatiana Oliveira é assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)